Espetando coração numa terça.

  • Disciplina

    Em busca de uma motivação razoável

    #1 

    Eu tinha uns treze para quatorze anos. Era um iniciante no violão que estava desesperadamente buscando um norte. Meu professor tentava me educar com MPB e música clássica. Não tinha necessariamente restrições quanto ao repertório, mas estava numa fase mais geral de rock clássico e alternativo saído de um longo período focado no metal. Isso fazia com que meu engajamento com Milton Nascimento, Chico Buarque ou Baden Powell ficasse próximo de zero, inviabilizando também qualquer rotina de aprendizado teórico. 

    Eu rebatia a didática nas próprias aulas levando de casa coisas como o unplugged do Eric Clapton (meu irmão tinha o songbook). Ele dava uma olhada comigo e então deixávamos o livro de lado para que ele fizesse sua própria interpretação, provavelmente simplificada para me ajudar a engrenar. Mas eu só conseguia me sentir a vítima que tomava uma saraivada de escalas e exercícios de mão esquerda, que eu odiava praticar. 

    Apesar de um pouco conservador no método e talvez com pouca paciência para aplacar minha ansiedade e falta de foco adolescentes, era um professor maravilhoso que me ensinou diversas lições preciosas. A versão de “Old Love” que eu toco até hoje é a dele. E num dia em que me encontrava particularmente frustrado e em que obviamente não tinha feito o dever de casa, mostrei com um certo orgulho alguns dos atalhos que tinha desenvolvido para tocar alguma coisa que ele tinha me passado. Dada a reprovação quase que imediata, respondi à demonstração correta dele com um “mas isso aí são só detalhes”. A réplica foi curta, mas profunda: “música é feita de detalhes”.  

    Caí fora e não apareci mais nas aulas.

    Menos de um ano depois, de forma totalmente aleatória, bati na porta do mesmo professor dizendo que o que eu queria mesmo era tocar violão flamenco (não sei de onde tirei essa ideia, não escutava nada remotamente parecido). Ele me aceitou de novo como aluno e, empolgado, voltei crente de que dessa vez iria me aplicar. Acho que essa série de aulas durou no máximo umas três semanas. Larguei tudo de novo e comecei a tirar músicas de ouvido ou com tablaturas achadas na internet, num dos primeiros usos que encontrei para os mecanismos de busca rudimentares da época. Obtive sucesso moderado com essa abordagem, que no geral é exatamente a mesma até hoje: procuro uma notação de referência, simplifico as partes que acho que não valem o esforço, adiciono alguns floreios quando acho que estou simplificando demais e sigo adiante. 

    A experiência que tive com o violão se repetiu de diversas formas durante a minha vida. Mesmo reconhecendo o papel indispensável da disciplina, sempre tive imensa dificuldade de colocar planos de aprendizado regulares em prática. Rotinas de estudo, progredir antes de focar em outra coisas ou mesmo manutenção de engajamento sempre foram obstáculos em adquirir novas habilidades ou para me desenvolver naquilo em que já tinha alguma aptidão.  

    #2

    Penso que a essa altura a expectativa para esse tipo de relato viria na forma de algum tipo de redenção. Ou pelo menos um bom resumo de lições aprendidas. Mas permita-me oferecer apenas um insight. 

    Encontrar motivação me parece cada vez mais ser crucial. E não digo do tipo “urrú vamos lá” ou “o importante é sonhar”. Mas uma motivação razoável é o que ajuda a ancorar um desejo muito abstrato em alguma espécie de realidade. 

    Sigo no exemplo do violão: quase trinta anos depois daquelas aulas frustradas de flamenco, minha técnica melhorou marginalmente (se é que melhorou). Tenho muito mais experiência e vivência musical, mas minha capacidade de improvisar qualquer coisa não mudou muito. Sempre foi algo que gostaria de dominar, e diversos cursos online ou resoluções de ano-novo não mudaram a realidade: eu não tinha uma motivação mais clara, mais razoável. Eram coisas tipo “quero saber como solar direito”. 

    O que melhorou minha vida nesse sentido recentemente foi fazer as pazes entre minha (baixa) capacidade técnica e o que eu realmente gosto de fazer: tocar bem os acordes, inserir alguns floreios e conseguir reproduzir bem uma música do início ao fim. E o insight veio ao investir um pouco de tempo para entender o que carrega o negócio todo, no final das contas: as bases. John Frusciante faz isso excepcionalmente bem. John Lennon, um compositor brilhante, não é necessariamente conhecido pela sua proficiência na guitarra. Mas é inspirador ver ele carregando boa parte do arranjo de “Dig A Pony” com acordes simples, mas tocando variações que preenchem o espaço brilhantemente. E Hendrix, que jamais será superado, é muito mais conhecido por seu virtuosismo. Porém, a maneira como praticamente orquestra em torno de versos como o de “May This Be Love” mostra que, antes de tudo, é preciso servir a música com boas bases. 

    E nessa jornada de frustrações múltiplas, consegui chegar ao que julgo ser a minha motivação razoável. Claro que não é tocar como Hendrix, Frusciante ou Lennon. Mas apreciar a experiência acumulada para um fim mais modesto: ser o melhor guitarrista-base que eu posso ser. Poder sintetizar isso me tirou um peso imenso que me auto-impus durante um processo que deveria prazeroso e não feito inteiramente de culpa. 

    Se depois disso comecei a estudar e praticar mais? Bom, daí já é outra história.


    #3

    Filme

    Speak No Evil é um filme de terror que não é bem terror. Ele tem apenas uma cena violenta (que é absolutamente brutal, diga-se de passagem). Mas mais que a explosão sanguinolenta que invariavelmente chega, a forma como a trama vai se desenvolvendo é profundamente perturbadora pois mexe num tema muito atual: a incapacidade de algumas pessoas de impôr seus limites, mesmo quando estão diante do que claramente é uma imensa roubada. Na pressão social de agradar, de dar uma outra chance, de experimentar o que nunca se tentou antes pode se esconder o maior dos pesadelos. É para assistir naqueles dias em que se está aberto a arruinar tudo. 

    Podcast

    História FM é um dos meus podcasts favoritos. Tem tanto episódio bom que fica muito difícil recomendar só um. Mas essa semana voltei num antigo que foca nos fugitivos nazistas que passaram pelo Brasil, onde o professor Bruno Leal destrincha o contexto, os mitos e alguns episódios mais conhecidos desse período que foram tema da sua tese de doutorado. Mas o episódio mais surreal de todos é o que dá título ao seu livro, O Homem dos Pedalinhos. Não vou falar mais nada pra não estragar a experiência.

  • Videogame

    Uma amostra de um dos cenários desoladores e ao mesmo tempo estranhamente familiares de Half-Life 2 (aqui, da expansão Lost Coast)

    #1

    [Publicado originalmente em 15 de outubro de 2014]

    A primeira lembrança clara: sentado no chão de madeira da casa da zona sul em Porto Alegre, no que sempre se convencionou chamar de A Sala de Baixo: almofadas jogadas, uma televisão RCA com tampo de madeira, talvez a lareira acesa no inverno. Pulos, gritos e uma algazarra abafada (ou estimulada) pelos sons rudimentares saídos daquela caixa conectada ao aparelho prateado ancorado no chão. Na tela, linhas demarcando a parede de uma espécie de labirinto, círculos piscantes fazendo figuração de vilões e uma espécie de inseto branco em fuga atabalhoada controlada pelo joystick.

    Tartarugas, do Odyssey, foi o primeiro game que joguei na vida. É um pouco estranho fazer essa distinção, porque há pouca memória afetiva e consciente antes disso. Quatro para cinco anos de idade, o suficiente para se dar conta que ele, o videogame, sempre esteve lá.

    Na primeira série, acordava muito cedo para ir para a escola, mas lembro claramente de colocar o despertador para às 5:30 da manhã para poder jogar uma partida de Double Dragon 2 antes de tomar o café. Parava sempre mais ou menos no mesmo lugar e nunca cogitei pausar, desligar a TV e continuar depois do almoço.

    Aprendi o conceito que as outras pessoas tinham do Natal graças ao videogame. A primeira vez que vi alguém ser torturado pela observância da data festiva para se ganhar um presente. Um vizinho de prédio em São Paulo sabia que iria ganhar o Predador do Phantom System com alguns meses de antecedência. Porém, só poderia desembrulhar a caixa no dia 25 de dezembro. Descrevia com certa ponta de tristeza, em todos os nossos encontros, como já sabia ao certo que ia poder jogar Predador, era só esperar a chegada do Natal, afinal estava ali pertinho. Eu não compreendia a necessidade de esperar por um presente que já se sabe qual é, se não tem surpresa, dá o presente de uma vez. E eu sofria um pouco por ele, afinal já tinha jogado Predador e sabia se tratar de uma verdadeira bomba.

    Na década de 80 e início dos 90, a única fonte de informação possível para quem quisesse ler sobre games eram as revistas importadas. Meu pai de vez em quando nos trazia algum exemplar da Electronic Gaming Monthly quando chegava do aeroporto. Não entendia uma palavra de inglês, mas me forçava a ler tudo para de alguma maneira tentar achar dicas ou procurar sobre algum lançamento vindouro. Lembro claramente de ter visto telas de Super Mario Bros.3 que jamais existiram, pois joguei e joguei aquela desgraça que provavelmente é um dos maiores jogos já feitos e nunca, jamais vi uma cena onde o Mario escorrega numa rampa de tijolos azuis em direção à tela, como se fosse aterrissar na sala. Mas essa imagem ficou na minha cabeça por anos e nunca consegui concluir se vi uma foto de uma versão demo, se sonhei por causa da expectativa da primeira partida que demorou meses para acontecer ou se simplesmente inventei tudo.

    Não saber inglês, não ter internet, inventar tudo. Eu acho que levei dois anos para chegar ao final de Monkey Island 2.

    A primeira vez que tive que parar de jogar por um tempo pelo mais completo pavor foi em 1992, com Alone in The Dark. Os gráficos hoje em dia são mais dignos de provocar risadas do que desespero. Cortando para 2012, fui obrigado a desistir de Dead Spacepor não aguentar a ansiedade e os sustos provocados pelos monstros caindo de tubos de ventilação escuros direto na minha cara (ou do personagem). No ano seguinte tentei de novo, exatamente o mesmo fracasso. Desenvolvi sozinho a cura para o trauma, que consistiu em assistir vídeos de outras pessoas jogando como se não estivesse se passando absolutamente nada demais. Deu certo.

    Joguei Half-Life 2 quase quatro anos depois do seu lançamento. E também todos os episódios subsequentes, que dão seguimento à história. Confidenciei isso a um amigo, que me respondeu que gostaria de ser eu naquele momento para poder ter a sensação de jogar Half-Life 2 pela primeira vez de novo. É mais ou menos o que sinto com alguns livros e filmes que continuam existindo por algum tempo, mesmo depois que a experiência termina. Durante alguns meses, fiquei com a sensação terrível de estar vivendo uma vida longe dos personagens, sem saber o que acontecia com eles. Pouco depois, tentei preencher o vazio gigantesco lendo especulações sobre um novo jogo, que provavelmente jamais irá existir, e acabei me dando conta que a vida é mais ou menos isso aí.


    #2

    Seis anos depois de eu publicar esse texto pela primeira vez e quase dezesseis anos após o lançamento de Half-Life 2, finalmente um novo capítulo da série veio ao mundo. Half-Life: Alyx é um prequel que foi concebido para ser jogado exclusivamente através de headsets de realidade virtual. Considerado de forma quase unânime por críticos e fãs como um dos maiores jogos já feitos para PCs, chegou a ser apontado como o killer app que tantas empresas estão tentando produzir para tornar os óculos de VR um produto com apelo de massa. Mas parece que ainda não foi dessa vez. E confesso que minha aversão a todo o conceito em si me impediu de investir no hardware que me permitiria imersão total num dos mundos que mais me impressionaram nessa longa trajetória gamer. 

    Por ora, opto decidido pela melancolia do que poderia ter sido. Mas ao digitar essa espécie de posfácio, confesso que em algum canto começa a crepitar uma fagulha de quem sabe. 


    #3

    Leitura

    Está boa demais essa entrevista com o Werner Herzog no Guardian. Lá pelo meio ele responde uma pergunta do cineasta Ken Burns sobre a influência dos sonhos na sua obra e a resposta não poderia ser mais Herzog: I do not dream. Quem sabe um colega de aphantasia? Imaginei o que seria de bom um documentário dele sobre o tema.

  • Aphantasia

    Agora eu enxergo é nada
    Pessoas sentadas assistem ao pôr-do-sol na beira do rio IJ, que divide a estação central de Amsterdam e a região norte da cidade.

    #1

    Não lembro exatamente quando nem onde foi a primeira vez em que me deparei com o conceito de aphantasia. Alguém me alertou a respeito? Caiu aleatoriamente no meu feed nas redes sociais onde não estou mais? Só sei que faz alguns anos e envolvia alguma das tantas repercussões na mídia a respeito do estudo contemporâneo mais detalhado do assunto. A pesquisa foi feita pela equipe do professor Adam Zeman da universidade de Exeter e o artigo mais famoso publicado em 2015. 

    Mas o conceito de aphantasia já havia sido abordado lá em 1880 por Francis Galton (que, por sua vez, era primo de Charles Darwin. Mas vamos adiante). 

    Enquanto Galton conduzia uma de suas pesquisas, ficou meio abismado ao perceber que a proporção de seus pares cientistas que relatavam ser incapazes de entreter imagens mentais parecia ser ainda maior que a média:

    To my astonishment, I found that the great majority of the men of science to whom I first applied, protested that mental imagery was unknown to them, and they looked on me as fanciful and fantastic in supposing that the words “mental imagery” really expressed what I believed everybody supposed them to mean. They had no more notion of its true nature than a colour-blind man who has not discerned his defect has of the nature of colour.

    Em estudos mais atuais (2022), assume-se que por volta de 0.8% da população mundial é incapaz de produzir quaisquer imagens mentais. Já 3.9% das pessoas não conseguem visualizar nada mentalmente ou têm uma vaga capacidade para tanto. E os estudos feitos por Zeman parecem reforçar a percepção que Galton teve ao consultar seus pares lá no século 19: pessoas com aphantasia têm mais probabilidade de trabalhar nas áreas científicas ou com grande base em exatas

    Em retrospecto e fuçando em todos os links que encontrei, acredito que tenha sido esse post aqui que me tragou para o fenômeno. Sei que na época me impactou profundamente saber que existia um nome e estudos sérios para o que sempre experimentei desde que me conheço por gente. 

    E é ainda mais interessante que Zeman e sua equipe entraram em contato mais direto com o assunto ao receberem um paciente que começou a sofrer sintomas de aphantasia depois de uma cirurgia. Um tratamento recuperou parte da sua capacidade de visualizar coisas mentalmente, mas eles não imaginavam que ao publicar os resultados da pesquisa seriam contactados por dezenas de pessoas relatando a mesma história. Com uma grande diferença: todas essas pessoas narravam ter simplesmente nascido assim, sem citar um evento causador ou trauma. 

    *******

    Fecha os olhos e imagina um…

    Não. Não consigo. 

    Lendo livro tal eu não conseguia tirar da cabeça a cena tal e consegui me ver lá dentro e…

    Também não. 

    Não é que tu não sonha, é tu que não lembra. 

    Tá bem. Então não lembro de 99% dos sonhos que tive na vida. 

    Será que perto da morte minha vida não vai passar na frente dos meus olhos como num filme? 

    *******

    Sempre foi um pouco frustrante, como descobrir que só resta 5% de bateria e o carregador ficou em casa. Achava também que era a razão por eu não conseguir desenhar muito mais que bonecos de palitinho e por ter problemas de orientação básica. 

    Sorte a minha ter grande talento para cálculo e ter dedicado toda a minha vida até aqui a trabalhar como engenheiro de acelerador de partículas e…bem, deixa pra lá. 


    #2

    Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:

    Podcast: 

    Broken Record com John Frusciante: longa conversa do produtor Rick Rubin com o guitarrista. Como colaboradores de longa data, rende mais de 4 horas de conversa com insights artísticos, humanos e espirituais de um dos gênios de nossa época. São quatro episódios que recomendo fortemente, gostando ou não da música envolvida. 

    Música:

    Maggie Rogers no Tiny Desk: não é somente por ser uma das artistas favoritas da minha filha de 9 anos. Mas de tudo que tenho tentado consumir e entender da nova geração (tiozão detected), Maggie Rogers para mim está muitos degraus acima. Apesar dos arranjos nos discos serem meio modernosos demais pro meu gosto (tiozão detected de novo), o talento de composição que ela demonstra me fez soltar a arriscada e abalizada avaliação em um frase de certo impacto que é: mas é a Joni Mitchell dos 2020’s. Dito tudo isso, aprecie essa performance de três dos hits dela em formato intimista e me diga que estou errado (melhor não).

  • A crise da vez

    #1

    A grande crise de saúde mental que está cada vez mais em evidência por aí pode parecer um tanto artificial e um outro tanto forçada. Acho que é natural esse sentimento se manifestar em algumas pessoas já que parece algo que surge meio que do nada e acaba por ocupar grande espaço na pauta de diversas publicações. E não ajuda a forma como o tópico costuma ser abordado: com listinhas de 10 pontos infalíveis, saídas supostamente simples (como sair para caminhar para relaxar) e coisas do tipo. Não é algo de solução fácil. 

    Mas a crise existe e ela é desastrosa. E se fosse realmente fácil ela já teria sido domada. Por isso o melhor jeito de se inteirar sobre o tamanho do pepino é começar a entender o que vem acontecendo nos últimos anos e o impacto que isso vem causando nas pessoas.

    E se houver um único ponto positivo nessa exposição recente do fenômeno acho que é poder dar visibilidade a um sofrimento real. E, em paralelo, espero que seja também uma via para pavimentar relações mais harmônicas, novas legislações trabalhistas e um caminho de menos sofrimento num futuro bem próximo. 

    #2

    Estou de licença do trabalho há seis meses. Ao me dar conta disso, o que primeiro vem à mente? Nessa ordem: 

    • Que vergonha insuportável estar tanto tempo fora do trabalho. 
    • Que peso horrível para minha família e meus amigos mais próximos. 
    • Que privilégio imenso e ao mesmo tempo constrangedor. Estou sem trabalhar há tanto tempo, recebendo tratamento, melhorando aos poucos e tudo isso sem passar por qualquer dificuldade financeira. No Brasil (ou em muitos outros lugares) provavelmente eu teria que calar a boca e fingir que nada está acontecendo como fiz até pouco tempo, até o copo transbordar. 

    Dá para notar algum padrão? Pois é. Vergonha. Culpa. Frustração. O pacote todo aliado a uma dívida eterna com os outros. Comecei a priorizar meu bem-estar quando a coisa já tinha degringolado completamente.

    Levei quase até o último mês da minha licença médica para finalmente conseguir admitir em voz alta: eu estou sofrendo um burnout. Na verdade, precisei de alguém me dizendo em alto e bom som para finalmente processar internamente. Não adiantaram sinais claros, nem preencher teste após teste indicando a situação de alto risco. E, mesmo com esse reconhecimento tardio, dá para perceber no exercício acima que ainda assim não ajudou muito a aliviar o peso criado por essa situação. 

    Mesmo num país onde a crise tem nome e números e uma rede de apoio pública e privada, é difícil se movimentar num terreno onde estar doente não se encaixa nas expectativas de quem te olha saindo na rua. Não estou preso na cama, nem num hospital, nem preciso de cuidado constante. Estou em casa pois estou doente geralmente é acompanhado de estupefação ou uma rápida guinada no assunto do small talk inicial. 

    Estou bem, mas já estive bem pior. Na real hoje é um dia bem ruim. Estou bem fisicamente, mas meio desgraçado da cabeça. Essas são algumas das respostas que tenho dado para a fatídica pergunta (sim, aquela). Mas em alguns dias sim, estou simplesmente bem. O que parece automaticamente me habilitar a retornar o quanto antes às atividades. Até que vem o outro dia. E o outro. E o outro. E a gente vê que não funciona bem assim. 

    Isso não existia antes. Agora tudo é burnout. No meu país de origem ou como fui criado, a gente não pensa nisso e toca a ficha. Ninguém me disse isso: eu travo esses diálogos mentalmente todos os dias assim que acordo. Mesmo inserido na dificuldade, tudo parece ser questionável, forçado ou simplesmente distante do real. É enlouquecedor. 

    Não tenho nenhum insight enriquecedor para oferecer, nenhum conselho para dar. Provavelmente é um assunto ao qual voltarei algumas vezes. Mas me pareceu relevante trazer à tona já que tantas pessoas estão vivenciando isso, todos os dias. E é um assunto com o qual quase ninguém sabe lidar direito. Mas não precisa ser assim. Não vai ser sempre assim. 

    Na real, tenho um conselho sim: tá pesado demais? Fale com alguém. Está apresentando sintomas que impedem seu funcionamento básico no dia a dia? Procure ajuda. Por que isso é algo que não tende a desaparecer e vai cobrar seu preço mais cedo ou mais tarde. Se já não está cobrando. 


    #3

    Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente: 

    Podcast

    Primeiro Contato: o jornalista Henrique Sampaio criou um documento essencial que narra os primórdios e desenvolvimento da computação e da internet comercial no Brasil. Falou alto aqui por narrar muitos momentos-chave da minha vida e de muita gente. Ainda tece um panorama do presente que dá o que pensar sobre o futuro. 

    Livro

    Trilogia Outline, da Rachel Cusk. Estou quase terminando o terceiro volume e adiando ao máximo pois não quero que acabe. A escrita é brilhante e os personagens ganham forma às custas da narradora, que parece estar ali inicialmente para ser protagonista e acaba servindo como veículo para seus relatos e experiências.

    The shops were the same shops you saw in town centres around the world and the bars and cafés were touristic versions of themselves in the same inevitable way as everywhere else, and so this regeneration, she said, begins to look a little like a mask of death. Europe is dying, she said, and because every separate part is being replaced as it dies it becomes harder and harder to tell what is fake and what is real, so that we might not realise until the whole thing has gone. 

    Kudos: A Novel (Outline Trilogy Book 3)

    Música

    Loose Future, Courtney Marie Andrews. Disco de 2022 da cantora que recentemente abriu a tour europeia do Wilco. Americana com um pé no pastoral e outro em bar de beira de estrada. 

    Julian Lage, Love Hurts (2019): o primeiro álbum auto-produzido pelo fenômeno do jazz. Gravado ao vivo no estúdio e quase todos os números no primeiro take, demonstra parte da obsessão do artista em achar os timbres perfeitos para contar uma história. Jazz, mas uma pilha mais cavernosa. O baixão, a guitarra distorcida, o climão. Parece um disco instrumental do Tom Waits em alguns momentos. E a versão de Love Hurts é ao mesmo tempo mais alegre e mais suja. Lage ainda é um gentleman absurdamente eloquente e que transmite uma paz quase desconfortável quando fala. Recomendo também essa entrevista dele com Rick Beato, onde fala mais sobre algumas das suas escolhas técnicas idiossincráticas e sua jornada como músico prodígio que agora foca basicamente no que é essencial e vital.