Semana passada assisti o documentário “Anselm”, do Wim Wenders. Infelizmente não foi em 3D nem numa tela 6K (existe?) como o diretor o concebeu, mas mesmo na TV de casa foi especial. Anselm Kiefer é um dos maiores artistas visuais vivos e uma pequena obsessão particular.
A quem se interessar em buscar mais contexto antes do filme, uma boa porta de entrada são duas matérias do jornal The Guardian. A primeira é uma entrevista de 2023 que abre com uma declaração que já elucida muita coisa: “our house was bombed the night I was born”. A outra, de 2014, tenta colocar em palavras e imagens o atual estúdio do artista no sul da França. Talvez o protagonista de fato no filme de Wenders, o local tem 80 hectares para abrigar uma produção de escala descomunal onde criação e aniquilação estão sempre lado a lado, não raro em combustão.
Tomei contato com a obra de Kiefer pela primeira vez numa viagem para Berlim. Eu estava de férias e tinha viajado para encontrar a Júlia depois que ela concluiu uma bolsa de estudos. Alguns trabalhos estavam expostos na Neue Nationalgalerie, e lembro de ter sido imediatamente tragado. Uma marca foi deixada e é cultivada desde então.
Essa semana visitamos uma exposição solo de Kiefer aqui na Holanda. Em diversos momentos ele se apoia na obra de Paul Celan como um ponto de partida para criar a partir do inexplicável, do inaceitável ou do que simplesmente não se deve falar sem acabar ecoando a barbárie, como ponderava Adorno até finalmente ler o poema Todesfuge e mudar de ideia.
Black milk of dawn we drink you at night we drink you mornings and noontime we drink you evenings we drink and we drink A man lives in the house he plays with the snakes he writes he writes when it turns dark to Deutschland your golden hair Margarete Your ashen hair Shulamit we dig a grave in the air there one lies at ease
O tom é evidentemente soturno, desesperador quando não beirando o insuportável. No entanto, a cadência, a maneira de concatenar as palavras e os versos circulares rapidamente conduzem ao que parece um estado de transe. Kiefer explora tanto esses temas que chegou a dedicar uma exposição inteira a Celan. Nesses trabalhos é comum o artista transcrever versos inteiros da poesia que ajudou o autor de origem romena a processar a experiência do holocausto. E apesar de empregar materiais pesados, há sempre algum facho de claridade tentando romper com a matéria escura dominante.
Wim Wenders também nasceu em 1945 e, apesar de nenhuma vez aparecer interagindo diretamente com o objeto do seu filme, fica claro que os dois, tão distintos no seu fazer artístico, encontraram pontos de convergência inevitáveis pelo caminho. E se fica difícil de colocar em termos mais concretos, essa passagem de um texto de Ruth Franklin sobre como Paul Celan ajudou a refundar a língua alemã toca no ponto do suposto hermetismo da sua poesia, recurso bastante usado pela crítica quando um artista não parece ecoar as expectativas de uma época:
Both poetry and prayer use words and phrases, singly or in repetition, to draw us out of ourselves and toward a different kind of perception. Flipping from the poems to the notes and back again, I wondered if all the information amounted to a distraction. The best way to approach Celan’s poetry may be, in Daive’s words, as a “vibration of sense used as energy”—a phenomenon that surpasses mere comprehension.
“Anselm” se desenrola de forma mansa, delicada. É um documentário na forma, às vezes se aproximando de um sonho que parece muito mais interessado na energia e vibração dos sentidos do que em compreender o que quer que seja. Mas ele tem um olhar atento que acompanha o movimento ininterrupto que o artista faz adiante, tomando o cuidado de nunca perder de vista tudo aquilo que o precedeu.
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