Memórias de bicicleta

(publicado originalmente em 23 de novembro de 2014)

I.

Demorei um pouco para conseguir me equilibrar pela primeira vez. A maioria das crianças à minha volta tinha conseguido aos seis, cinco e até quatro anos de idade. Lembro da pressão se empilhando sobre cada fracasso. Até que decidi vai ser hoje e me forcei a só voltar para dentro de casa depois de obter sucesso. Passava algum feriado na casa de amigos dos meus pais no litoral paulista e tinha uma Monark aro 16 preta com detalhes em amarelo. Minha estratégia: montar em cima da grama e tentar pedalar em diagonal até alcançar a rua de areia. O trajeto devia ter uns cinco metros, no máximo. Tentei por horas (medidas em tempo de criança), mas quando finalmente consegui, não continuei. Minha forma de comemorar a habilidade recém-adquirida: saltei da bicicleta e voltei empurrando-a. O punho de borracha do guidão havia sido furado pelo cano de metal, que estava entupido de areia e tufos de grama pendendo para fora como cabelos. Não pedalei de novo por muito tempo.

II.

Cavalos-de-pau intermináveis no areião dos terrenos baldios. Fritar os pneus em freadas bruscas na rua feita de paralelepípedos afiados (pareciam crivados de vidros). Deixar o pneu ficar careca era uma afirmação no grupo, mas chegar ao ponto de fazer as costuras vazarem para fora da câmara era para poucos. Optava por frear usando a sola dos chinelos, que rapidamente derretiam e ficavam imprestáveis. Tinha medo que o pneu explodisse.

III.

Uma vez pedalei no segundo andar de uma casa em obras.

IV.

Vi muita gente se esborrachando feio e se salvando de uma temporada no hospital. Vi gente dando de cara num muro e quebrando a bicicleta ao meio. Vi também um amigo perder a roda da frente numa descida alucinada e conseguir aterrissar em pé, sem qualquer dano, graças às suas pernas longas. Outro voou por cima de uma rampa construída pelo pessoal do skate, mas no ar a bicicleta tombou e ele, destemido, manteve-se na mesma posição, agarrado ao guidão como se nada tivesse acontecido, arrastando-se por alguns metros (enxerguei a cena em câmera lenta). Não lembro de ter caído feio, mas de certa forma um tanto estranha desejava que acontecesse.

V.

Esse cara mais velho pediu minha bicicleta emprestada, certa vez. Era o terror da vizinhança. Mal tive tempo de dizer não ele já tinha desaparecido em altíssima velocidade, saltando lombadas e calçadas e arrebentando com tudo. Desapareceu por uma meia hora. Conformado, mas desejando que alguma coisa ruim acontecesse, voltei para casa. Mal fechei a porta e tocou a campainha e lá estava ele, sorriso amarelo, joelhos derramando sangue. A bicicleta parecia nova.


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