#1
[Publicado originalmente em 15 de outubro de 2014]
A primeira lembrança clara: sentado no chão de madeira da casa da zona sul em Porto Alegre, no que sempre se convencionou chamar de A Sala de Baixo: almofadas jogadas, uma televisão RCA com tampo de madeira, talvez a lareira acesa no inverno. Pulos, gritos e uma algazarra abafada (ou estimulada) pelos sons rudimentares saídos daquela caixa conectada ao aparelho prateado ancorado no chão. Na tela, linhas demarcando a parede de uma espécie de labirinto, círculos piscantes fazendo figuração de vilões e uma espécie de inseto branco em fuga atabalhoada controlada pelo joystick.
Tartarugas, do Odyssey, foi o primeiro game que joguei na vida. É um pouco estranho fazer essa distinção, porque há pouca memória afetiva e consciente antes disso. Quatro para cinco anos de idade, o suficiente para se dar conta que ele, o videogame, sempre esteve lá.
Na primeira série, acordava muito cedo para ir para a escola, mas lembro claramente de colocar o despertador para às 5:30 da manhã para poder jogar uma partida de Double Dragon 2 antes de tomar o café. Parava sempre mais ou menos no mesmo lugar e nunca cogitei pausar, desligar a TV e continuar depois do almoço.
Aprendi o conceito que as outras pessoas tinham do Natal graças ao videogame. A primeira vez que vi alguém ser torturado pela observância da data festiva para se ganhar um presente. Um vizinho de prédio em São Paulo sabia que iria ganhar o Predador do Phantom System com alguns meses de antecedência. Porém, só poderia desembrulhar a caixa no dia 25 de dezembro. Descrevia com certa ponta de tristeza, em todos os nossos encontros, como já sabia ao certo que ia poder jogar Predador, era só esperar a chegada do Natal, afinal estava ali pertinho. Eu não compreendia a necessidade de esperar por um presente que já se sabe qual é, se não tem surpresa, dá o presente de uma vez. E eu sofria um pouco por ele, afinal já tinha jogado Predador e sabia se tratar de uma verdadeira bomba.
Na década de 80 e início dos 90, a única fonte de informação possível para quem quisesse ler sobre games eram as revistas importadas. Meu pai de vez em quando nos trazia algum exemplar da Electronic Gaming Monthly quando chegava do aeroporto. Não entendia uma palavra de inglês, mas me forçava a ler tudo para de alguma maneira tentar achar dicas ou procurar sobre algum lançamento vindouro. Lembro claramente de ter visto telas de Super Mario Bros.3 que jamais existiram, pois joguei e joguei aquela desgraça que provavelmente é um dos maiores jogos já feitos e nunca, jamais vi uma cena onde o Mario escorrega numa rampa de tijolos azuis em direção à tela, como se fosse aterrissar na sala. Mas essa imagem ficou na minha cabeça por anos e nunca consegui concluir se vi uma foto de uma versão demo, se sonhei por causa da expectativa da primeira partida que demorou meses para acontecer ou se simplesmente inventei tudo.
Não saber inglês, não ter internet, inventar tudo. Eu acho que levei dois anos para chegar ao final de Monkey Island 2.
A primeira vez que tive que parar de jogar por um tempo pelo mais completo pavor foi em 1992, com Alone in The Dark. Os gráficos hoje em dia são mais dignos de provocar risadas do que desespero. Cortando para 2012, fui obrigado a desistir de Dead Spacepor não aguentar a ansiedade e os sustos provocados pelos monstros caindo de tubos de ventilação escuros direto na minha cara (ou do personagem). No ano seguinte tentei de novo, exatamente o mesmo fracasso. Desenvolvi sozinho a cura para o trauma, que consistiu em assistir vídeos de outras pessoas jogando como se não estivesse se passando absolutamente nada demais. Deu certo.
Joguei Half-Life 2 quase quatro anos depois do seu lançamento. E também todos os episódios subsequentes, que dão seguimento à história. Confidenciei isso a um amigo, que me respondeu que gostaria de ser eu naquele momento para poder ter a sensação de jogar Half-Life 2 pela primeira vez de novo. É mais ou menos o que sinto com alguns livros e filmes que continuam existindo por algum tempo, mesmo depois que a experiência termina. Durante alguns meses, fiquei com a sensação terrível de estar vivendo uma vida longe dos personagens, sem saber o que acontecia com eles. Pouco depois, tentei preencher o vazio gigantesco lendo especulações sobre um novo jogo, que provavelmente jamais irá existir, e acabei me dando conta que a vida é mais ou menos isso aí.
#2
Seis anos depois de eu publicar esse texto pela primeira vez e quase dezesseis anos após o lançamento de Half-Life 2, finalmente um novo capítulo da série veio ao mundo. Half-Life: Alyx é um prequel que foi concebido para ser jogado exclusivamente através de headsets de realidade virtual. Considerado de forma quase unânime por críticos e fãs como um dos maiores jogos já feitos para PCs, chegou a ser apontado como o killer app que tantas empresas estão tentando produzir para tornar os óculos de VR um produto com apelo de massa. Mas parece que ainda não foi dessa vez. E confesso que minha aversão a todo o conceito em si me impediu de investir no hardware que me permitiria imersão total num dos mundos que mais me impressionaram nessa longa trajetória gamer.
Por ora, opto decidido pela melancolia do que poderia ter sido. Mas ao digitar essa espécie de posfácio, confesso que em algum canto começa a crepitar uma fagulha de quem sabe.
#3
Leitura
Está boa demais essa entrevista com o Werner Herzog no Guardian. Lá pelo meio ele responde uma pergunta do cineasta Ken Burns sobre a influência dos sonhos na sua obra e a resposta não poderia ser mais Herzog: I do not dream. Quem sabe um colega de aphantasia? Imaginei o que seria de bom um documentário dele sobre o tema.
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