Espetando coração numa terça: um blog à moda antiga.


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  • Memórias de bicicleta

    (publicado originalmente em 23 de novembro de 2014)

    I.

    Demorei um pouco para conseguir me equilibrar pela primeira vez. A maioria das crianças à minha volta tinha conseguido aos seis, cinco e até quatro anos de idade. Lembro da pressão se empilhando sobre cada fracasso. Até que decidi vai ser hoje e me forcei a só voltar para dentro de casa depois de obter sucesso. Passava algum feriado na casa de amigos dos meus pais no litoral paulista e tinha uma Monark aro 16 preta com detalhes em amarelo. Minha estratégia: montar em cima da grama e tentar pedalar em diagonal até alcançar a rua de areia. O trajeto devia ter uns cinco metros, no máximo. Tentei por horas (medidas em tempo de criança), mas quando finalmente consegui, não continuei. Minha forma de comemorar a habilidade recém-adquirida: saltei da bicicleta e voltei empurrando-a. O punho de borracha do guidão havia sido furado pelo cano de metal, que estava entupido de areia e tufos de grama pendendo para fora como cabelos. Não pedalei de novo por muito tempo.

    II.

    Cavalos-de-pau intermináveis no areião dos terrenos baldios. Fritar os pneus em freadas bruscas na rua feita de paralelepípedos afiados (pareciam crivados de vidros). Deixar o pneu ficar careca era uma afirmação no grupo, mas chegar ao ponto de fazer as costuras vazarem para fora da câmara era para poucos. Optava por frear usando a sola dos chinelos, que rapidamente derretiam e ficavam imprestáveis. Tinha medo que o pneu explodisse.

    III.

    Uma vez pedalei no segundo andar de uma casa em obras.

    IV.

    Vi muita gente se esborrachando feio e se salvando de uma temporada no hospital. Vi gente dando de cara num muro e quebrando a bicicleta ao meio. Vi também um amigo perder a roda da frente numa descida alucinada e conseguir aterrissar em pé, sem qualquer dano, graças às suas pernas longas. Outro voou por cima de uma rampa construída pelo pessoal do skate, mas no ar a bicicleta tombou e ele, destemido, manteve-se na mesma posição, agarrado ao guidão como se nada tivesse acontecido, arrastando-se por alguns metros (enxerguei a cena em câmera lenta). Não lembro de ter caído feio, mas de certa forma um tanto estranha desejava que acontecesse.

    V.

    Esse cara mais velho pediu minha bicicleta emprestada, certa vez. Era o terror da vizinhança. Mal tive tempo de dizer não ele já tinha desaparecido em altíssima velocidade, saltando lombadas e calçadas e arrebentando com tudo. Desapareceu por uma meia hora. Conformado, mas desejando que alguma coisa ruim acontecesse, voltei para casa. Mal fechei a porta e tocou a campainha e lá estava ele, sorriso amarelo, joelhos derramando sangue. A bicicleta parecia nova.


  • Os shows que me abalaram

    Introdução

    O que seria de um blog à moda antiga sem uma bela egotrip, não é mesmo? Essa aqui será uma daquelas, possivelmente em diversas partes e sem um final determinado.

    De início pensei num top 5 de shows mais importantes que já fui. Rapidamente isso passou para 10. Comecei a lista de fato e já estava chegando em 17…então resolvi tentar uma combinação de relato de um show específico com diversos eventos num post só. Vamos ver onde vai dar.

    A lista abaixo é o que tenho anotado depois do primeiro brainstorm. Minha intenção é atualizar esse post assim que ela for se expandindo. Possivelmente também vou agregar informações que vou ter que pesquisar um pouco mais a respeito pois não mantive qualquer espécie de registro físico como ingressos, etc. E câmeras digitais não existiam ou não se faziam disponíveis em boa parte deles.

    Enfim, este será o início, o meio e o fim de uma jornada que começou no início da década de 90. Logo mais sai o primeiro texto, e enquanto isso fiquem com A Lista (sem ordem ou critério de preferência):

    • Alice in Chains (Porto Alegre)
    • Faith No More (Porto Alegre)
    • Caetano Veloso (Hamburgo)
    • The Smashing Pumpkins (São Paulo)
    • Neil Young (Amsterdam)
    • Wilco (Amsterdam)
    • Feist (Utrecht)
    • Planeta Atlântida (Xangri-Lá)
    • M2000 Summer Concerts (Praia do Barco)
    • Sepultura, Raimundos e Ramones (Porto Alegre)
    • Legião Urbana (Porto Alegre)
    • Belchior (Porto Alegre)
    • Massive Attack e Ben Harper (Porto Alegre)
    • Elomar (Porto Alegre)
    • Guns N Roses (Porto Alegre)
    • Terra Samba, Asa de Águia e Sid Guerreiro (Porto Seguro)
    • Blues Etílicos (Porto Alegre)
    • Los Hermanos (Porto Alegre)


  • IA não existe e nunca existirá

    Detalhe de O Jardim das Delícias Terrenas, do pintor Hieronymus Bosch. Hoje em dia isso é considerado “conteúdo” pelo pessoal das big techs.

    É clickbait que chama? Pois é.

    Por causa do meu trabalho, tenho contato quase todos os dias com esse pessoal que acredita em usar inteligência artificial para absolutamente tudo e que não existe futuro possível sem ela. E que é inteligência artificial MESMO, e não um monte de scripts reagindo a prompts de texto baseados em material na sua maioria roubado dos seus autores. É uma chateação sem fim.

    No entanto, quando estou tentando buscar o contraponto quase sempre observo o extremo oposto na ala que se dedica a bater os tambores de que isso vai acabar com todos os empregos do mundo. Que não haverá espaço algum para a agência humana diante da máquina que sabe fazer tudo. Ou que simplesmente o planeta será exterminado no processo. É outra chateação sem fim.

    Tento sempre ser crítico com os extremos, mas algumas vezes o único caminho é criar a sua própria hipérbole e se divertir. Começou em grupos de WhatsApp com amigos, onde passei a compartilhar notícias dos muitos reveses recentes das big techs que estão apostando todas as fichas em alguma espécie de inteligência artificial e dando com os burros n’água (sempre quis digitar essa expressão) ou simplesmente consolidando seus monopólios na base da força bruta ao mesmo tempo em que o poder público finalmente parece começar a reagir. E toda vez que passava adiante um pouco do ridículo proporcionado por esse messianismo digital acabava assinando com meu novo bordão:

    IA não existe e nunca existirá.

    É piada, mas também não é. Por isso sigamos.

    Tenho lido tanta coisa sobre isso que tem me feito sorrir meio aliviado e meio nervoso que nem sei por onde começar. Na verdade sei: esse post do Nikhil Suresh é uma obra-prima de humor ao mesmo tempo crítico, melancólico e desesperado com o estado atual de toda essa ladainha:

    I Will Fucking Piledrive You If You Mention AI Again

    I’m going to ask ChatGPT how to prepare a garotte and then I am going to strangle you with it, and you will simply have to pray that I roll the 10% chance that it freaks out and tells me that a garotte should consist entirely of paper mache and malice.

    Além da catarse, no texto ele elabora muito bem sobre o papel de executivos, consultores e falsos messias do Vale do Silício em tentar vender a tecnologia como algo que ela simplesmente não é. Tudo, é claro, para tentar emplacar o retorno financeiro enorme que prometeram aos seus acionistas. Isso funcionou por algum tempo, mas além de claramente estar se configurando uma bolha, talvez ela já tenha até estourado.

    Outra fonte de informação e humor corrosivo sobre esse assunto é o Better Offline. Tanto no podcast quanto na sua newsletter Ed Zitron recebe convidados para descascar absurdos do mundo de IA, mas também do rumo das big techs em geral. Recomendo especialmente seus episódios sobre a OpenAI e essa verdadeira diatribe contra o executivo que teria destruído o mecanismo de busca do Google. Zitron algumas vezes admite estar totalmente possuído pelo ódio quando está produzindo seu material e isso adiciona uma camada extra de deleite que a essa altura simplesmente não dá para recusar.


    PS: um dia depois de postar sobre minha irritação com todo esse papo de IA, eis que finalmente encontro um texto equilibrado sobre o assunto. Ouvi na versão podcast, mas também está disponível o texto original no Guardian:

    • No god in the machine: the pitfalls of AI worship (podcast | texto)

  • Apenas moderadamente saudoso

    De novo?

    Olá. 

    No momento em que digito essa introdução, não tenho muita noção do que estou fazendo nem para quem. Não sei nem se vou publicar ou para quem vou mandar. Mas alguma coisa está dando um empurrãozinho extra dessa vez, a ponto de eu conscientemente decidir sentar na frente do computador e fazer algo a respeito.

    1. É você que ama o passado e que não vê 

    Tive acesso à internet e publiquei meu primeiro site no ano de 1995. Era evidente o privilégio naquela época, tanto em ter um computador quanto poder acessar a internet. Raios, mesmo telefone era algo que muita gente apenas esperava algum dia ter. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    Era um tempo sem redes sociais. As vi nascer, bem como algumas das tecnologias que usei para interagir on-line de forma mais expansiva. E também ajudei a enterrá-las: IRC, ICQ, MSN, scraps de Orkut. Abri minhas perspectivas em muitos sentidos. Conheci gente de toda parte do Brasil e do mundo. Minha primeira banda. Minha primeira namorada. Coisas marcantes, dezenas e dezenas de arrependimentos, todo o pacote de praxe que vem junto com a jornada. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    No início dos anos 2000, comecei a trabalhar com internet no Terra enquanto empurrava com a barriga uma faculdade de jornalismo onde fiz amigos para a vida. No portal também fiz amigos, trouxe amigos, deixei amigos: pessoais incríveis, com contextos completamente diferentes, mas unidas em entregar experiências e histórias para um mercado e uma indústria nascentes. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    Ainda na primeira metade dos anos 2000, participei de algumas das comunidades blogueiras incipientes no Brasil. Além da publicação de conteúdo em si (majoritariamente focado no próprio umbigo, é claro), foram movimentos que oportunizaram trocas, mais amizades sinceras, expansão de ideias e tudo mais. Mais que somente texto, houve também uma experimentação com formatos mais curtos (pré-Twitter), com fotografia, vídeos e até mesmo podcasts, enfiados à mão num servidor e linkados por força bruta numa página e gerando um feed de RSS primitivo. Não existia streaming. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    Até que isso, como todas as coisas, arrefeceu. Ou mudou de forma e passou a não interessar tanto. Ou simplesmente se tirou o time de campo para a nova geração ou qualquer um desses clichês para justificar a mudança de prioridades pouco antes dos 30 anos. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    2. Que o novo sempre vem

    Crise de meia idade? Talvez. A verdade é que já tentei voltar a escrever, mas sempre de um ângulo meio capenga. Pra não dizer equivocado. E o que faz agora ser diferente? Não sei ao certo. Mas parece uma mistura de “e por que não?” com “vai que”. 

    São outros tempos. mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso. 

    3. Os horrores que eu lhe digo

    Tá. Vou tentar ser mais sucinto: 

    1. Isso será um blog e de volta ao início dos anos 2000 usando WordPress e tudo e tendo meu próprio domínio. Chega de Substack. Talvez eu também mande posts por e-mail mais adiante, pois hoje em dia ninguém mais tem bookmarks no seu navegador. Nem ninguém usa leitor de RSS. Acho.
    2. Não vou escrever sobre meu dia-a-dia, mas obviamente sob a minha perspectiva. 
    3. Os assuntos majoritariamente devem ficar entre tecnologia, cultura (ênfase em música, cinema e quetais aqui e ali), culinária (sem receitas, mas anotações sobre comer e beber) e talvez um pequeno bocado na intersecção entre ser imigrante/morar fora do meu país de nascimento e criação há quase dez anos. 
    4. Não escreverei por métricas ou exposição. Mas evidente que ficarei contente com a sua decisão de gastar seu tempo com isso.

    Era isso. Até breve.


  • Drops

    #1

    Não me lembro se morava em São Paulo ou Porto Alegre, mas foi quando cursava o primeiro grau. Alguém falou “daí eu dei um ‘drops’ nos peito dele”. Fiquei escutando o relato do que seria alguma espécie de briga meio de longe, mas lembro do que consistia a técnica: era basicamente uma voadora de lado, dada com os dois pés. Só fui tentar retomar o termo anos mais tarde, na grande febre do Street Fighter 2. Mas desde então o golpe acabou virando A Voadora do Zangief.

    #2

    Isso era em São Paulo. Até pesquisei um pouco para ver se encontrava a origem, mas na minha infância por lá era comum chamar “bala” de “drops”. Ou mesmo “bala drops”. Sei que é um termo comum para se referir a mil tipos de doce, mas não encontrei o nexo causal para este ficar tão predominante por lá. Acho que até me choquei quando, de volta a Porto Alegre, meus amigos chamavam “Drops Garoto” de “Pastilha Garoto”. 

    #3

    Eu ficava absolutamente maluco com a maneira como o palhaço Bozo abria um picolé Galak na hora de fazer merchandising da finada Yopa no SBT. Ele delicadamente levantava duas abas na parte de baixo do sorvete e voilá: o plástico saía como se fosse uma luva. Tentei fazer isso dezenas de vezes, mas sempre acabava com o saco rasgado na diagonal ou forçando a barra até o palito trincar. 

    #4

    É meio vilificado pelos fãs, mas não importa quanto tempo passe: sempre que boto o Wild Mood Swings do The Cure pra tocar é uma viagem ensolarada para 1996. Que disco bem bom, que salada de peso serião e duro misturado com uns vaudevilles doidos e alguns dos melhores refrãos da década. Além de uma das melhores aberturas de disco de todos os tempos, tive sorte de pegar esse petardo ao vivo e nunca esquecerei. 

    #5

    Um belo apanhado da carreira e vida do Wim Wenders no Observer. Aproveita a repercussão do seu último filme, “Perfect Days”, para examinar questões onipresentes na sua obra. Uma perspectiva de quem levou décadas, mas finalmente parece ter se encontrado.

    Tanto “Perfect Days” quanto “Fallen Leaves”, do Aki Kaurismäki, me proporcionaram um estado de fuga e contemplação que há tempos não encontrava no cinema. Em épocas em que quase toda produção audiovisual é too big to fail, dos seriados a blockbusters e até mesmo algumas produções estrangeiras incensadas pela Academia, é revigorante ver dois diretores tão distintos não hesitando em produzir arte profundamente autoral e sem compromisso com entregar tudo de bandeja. 

    #6

    Tim Berners-Lee, o inventor da World Wide Web, publicou uma carta aberta com diagnóstico e propostas para retomar o espírito original da rede. Acredito que supera a mera nostalgia de “no meu tempo que era bom” justamente por olhar para frente. Essa publicação vem dois meses depois da fala de Cory Doctorow em janeiro sobre o seu conceito de enshittification que, apesar de encapsular bem mais do que a doença que acomete a internet contemporânea, também aponta a gravidade da crise sem se furtar de pautar soluções para o problema.


  • Para Paul Celan

    Anselm Kiefer, “Samson” (2014-2017).

    Semana passada assisti o documentário “Anselm”, do Wim Wenders. Infelizmente não foi em 3D nem numa tela 6K (existe?) como o diretor o concebeu, mas mesmo na TV de casa foi especial. Anselm Kiefer é um dos maiores artistas visuais vivos e uma pequena obsessão particular.

    A quem se interessar em buscar mais contexto antes do filme, uma boa porta de entrada são duas matérias do jornal The Guardian. A primeira é uma entrevista de 2023 que abre com uma declaração que já elucida muita coisa: “our house was bombed the night I was bornA outra, de 2014, tenta colocar em palavras e imagens o atual estúdio do artista no sul da França. Talvez o protagonista de fato no filme de Wenders, o local tem 80 hectares para abrigar uma produção de escala descomunal onde criação e aniquilação estão sempre lado a lado, não raro em combustão. 

    Tomei contato com a obra de Kiefer pela primeira vez numa viagem para Berlim. Eu estava de férias e tinha viajado para encontrar a Júlia depois que ela concluiu uma bolsa de estudos. Alguns trabalhos estavam expostos na Neue Nationalgalerie, e lembro de ter sido imediatamente tragado. Uma marca foi deixada e é cultivada desde então.

    Essa semana visitamos uma exposição solo de Kiefer aqui na Holanda. Em diversos momentos ele se apoia na obra de Paul Celan como um ponto de partida para criar a partir do inexplicável, do inaceitável ou do que simplesmente não se deve falar sem acabar ecoando a barbárie, como ponderava Adorno até finalmente ler o poema Todesfuge e mudar de ideia

    Black milk of dawn we drink you at night we drink you mornings and noontime we drink you evenings we drink and we drink A man lives in the house he plays with the snakes he writes he writes when it turns dark to Deutschland your golden hair Margarete Your ashen hair Shulamit we dig a grave in the air there one lies at ease

    O tom é evidentemente soturno, desesperador quando não beirando o insuportável. No entanto, a cadência, a maneira de concatenar as palavras e os versos circulares rapidamente conduzem ao que parece um estado de transe. Kiefer explora tanto esses temas que chegou a dedicar uma exposição inteira a Celan. Nesses trabalhos é comum o artista transcrever versos inteiros da poesia que ajudou o autor de origem romena a processar a experiência do holocausto. E apesar de empregar materiais pesados, há sempre algum facho de claridade tentando romper com a matéria escura dominante. 

    Wim Wenders também nasceu em 1945 e, apesar de nenhuma vez aparecer interagindo diretamente com o objeto do seu filme, fica claro que os dois, tão distintos no seu fazer artístico, encontraram pontos de convergência inevitáveis pelo caminho. E se fica difícil de colocar em termos mais concretos, essa passagem de um texto de Ruth Franklin sobre como Paul Celan ajudou a refundar a língua alemã toca no ponto do suposto hermetismo da sua poesia, recurso bastante usado pela crítica quando um artista não parece ecoar as expectativas de uma época: 

    Both poetry and prayer use words and phrases, singly or in repetition, to draw us out of ourselves and toward a different kind of perception. Flipping from the poems to the notes and back again, I wondered if all the information amounted to a distraction. The best way to approach Celan’s poetry may be, in Daive’s words, as a “vibration of sense used as energy”—a phenomenon that surpasses mere comprehension. 

    “Anselm” se desenrola de forma mansa, delicada. É um documentário na forma, às vezes se aproximando de um sonho que parece muito mais interessado na energia e vibração dos sentidos do que em compreender o que quer que seja. Mas ele tem um olhar atento que acompanha o movimento ininterrupto que o artista faz adiante, tomando o cuidado de nunca perder de vista tudo aquilo que o precedeu.

    Cena de “Anselm”, documentário do cineasta alemão Wim Wenders

  • A minha Viena

    #1

    2023 foi um ano atípico eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Eis que imediatamente minha mente emendou com um e qual ano recente não foi atípico? Mas ainda assim, diria que na jornada até aqui, consigo classificar como mais atípico que de costume. Que costume?

    Acabei indo para Porto Alegre de última hora no final do ano passado. Dada a crise da vez, pareceu um escape desejável para coroar um certo progresso eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar

    E em boa medida foi. Reencontrei amigos queridos que não via há muito tempo. Outro que não via fazia quase 12 anos. E mesmo com tanto tempo e distância entre nós, foi excelente perceber que tudo seguia igual. Ambos na condição de turistas na própria cidade, conseguimos rapidamente estabelecer a dinâmica de outrora. Ela obviamente não é realista nem mesmo sustentável nesse estágio da nossa vida, mas o simples fato de existir como tal e ainda poder ser retomada no espaço e no tempo é um regozijo por si só eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. 

    Mas já nos meus últimos dias por lá, ressurgiu aquela sensação um pouco desconfortável de não se saber bem onde está. Não chega a ser um não pertencimento, pois no minuto em que piso no saguão do Salgado Filho eu já saio quicando como em nenhum outro lugar. Não necessariamente de felicidade, mas como um jogador recém-aquecido substituindo um colega no segundo tempo eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Mas é meio que entrar quando já está estourando o tempo regulamentar, então ou se bota total foco e profissionalismo no tempo exíguo ou simplesmente fica-se fazendo de morto o que pode ser decisivo dependendo do estado da partida eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. 


    #2

    Nos parágrafos acima sequestrei, torturei e possivelmente desfigurei o cacoete do narrador-protagonista de Woodcutters (Derrubar Árvores, editado no Brasil pela Todavia), atualmente o meu livro favorito do escritor e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard. 

    A trama é bem simples: o narrador está num jantar da alta burguesia cultural de Viena e, enquanto os participantes aguardam a chegada de um ator que é o convidado de honra, fica observando e tecendo comentários a respeito de tudo e todos. Além de descrições pouco lisonjeiras, em especial da cidade de Viena e do seu ethos, ele também acaba rememorando o dia anterior, onde foi a um enterro de uma mulher com quem mantinha uma relação de proximidade (não sabemos de que natureza). Há ainda um embate com uma pessoa das letras que, depois de muitas páginas de pura acidez e destruição, acaba por revelar-se quase uma empatia, permeada por algum arrependimento do protagonista por não ter levado uma vida mais simples, na forma de um cortador de árvores que dá título ao livro. 

    O cacoete é repetido à exaustão em praticamente todas as páginas do primeiro terço do livro, num hábito bastante comum na escrita de Bernhard. Andar em círculos, demolir tudo e todos, mas revelar uma certa nostalgia por algum tempo ou lugar é algo que costuma acontecer com frequência nas suas narrativas. E, apesar de tudo soar excessivamente niilista para muita gente, o que é totalmente compreensível, é preciso ressaltar o humor que se embrenha pelo meio de tanta ruína. Nesse caso específico, Woodcutters é o livro que mais me fez rir na vida, gerando por vez acessos que me interrompiam a leitura por horas ou até dias. 

    Especialmente por conta do que foi escrito em Woodcutters e da forma como se refere à Áustria em toda sua obra, Bernhard foi frequentemente acusado de ser um Nestbeschmutzer na imprensa e em outros meios culturais. Obviamente o termo em alemão é mais, digamos…específico. Mas nesse caso, cuspir no prato em que comeu à exaustão dá ainda mais força para o alívio cômico que invariavelmente acaba chegando, seja de forma direta ou somente ao se contemplar o absurdo de algumas das suas hipérboles. É o caso da minha passagem preferida do livro, em que o narrador dá voz ao convidado de honra que parece espelhar seus sentimentos em relação ao cenário artístico de Viena: 

    The story of the directors of the Burgtheater is not just a scandalous story, said the actor, it’s possibly the saddest of all Viennese stories. Vienna is an art mill, the biggest art mill in the world, in which the arts and artists are ground down and pulverized year in, year out; whatever the art or whatever the artists, the Viennese art mill grinds them all to powder. It grinds everything to powder—everything, said the actor, quite ineluctably. And the curious thing is that all these people jump into this art mill entirely of their own volition, only to be totally ground down by it. Even the Burgtheater directors jump into it of their own free will, having in some cases spent their whole lives frantically seeking an opportunity to do so, falling over themselves to jump into this art mill in which they’ll be totally ground down. Totally ground down, totally pulverized, exclaimed the actor.

    Bernhard, Thomas. Woodcutters (Vintage International) (p. 170). Knopf Doubleday Publishing Group. Kindle Edition. 

    Esse livro de Bernhard causou tanto furor que chegou a ser recolhido das prateleiras depois que um juiz deu ganho de causa para o compositor Gerhard Lampersberg, que entrou com um processo alegando ter sido difamado ao se enxergar no casal Auersberger, os donos do apartamento onde se desenvolve a história. 

    Em uma entrevista logo após o lançamento do livro e antes deste ser confiscado, Bernhard elabora um pouco mais suas ambições com a obra e do seu fazer literário de um modo geral. Ali ele deixa bem claro que buscou uma espécie de catarse e que, apesar de vertiginosamente se manter mais no canto da aniquilação, o que ele busca ao final de contas é a grande união de tantas antíteses. Dessa forma, no momento em que conseguem escorrer pelas tantas rachaduras que vão aparecendo pelo caminho, a empatia, beleza e nostalgia acabam por ter um impacto de uma epifania: 

    FLEISCHMANN:  And would you say the excitement increases the closer one gets to the conclusion? 

    BERNHARD: An excitation is something that keeps increasing until the very end.  And so the book naturally ends in a state of total excitation by the city of Vienna, in embraces and annihilation all at one go, in a hug-like chokehold on Vienna, and [in my saying] Vienna, you are the best and at the same time the most horrible of all cities, as I daresay anybody else would about his home town.


    #3 

    Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:

    Filme:

    Espetacular o Anatomy of a Fall. Direção firme e econômica, um roteiro incrível e atuações fora de série. Mas o que mais me impressionou foram os elementos que vão sendo introduzidos para aumentar o ruído e a sensação de ser impossível extrair “a verdade” num tribunal: o testemunho do menino cego, a acusada num tribunal em Grenoble ouvindo perguntas em francês e respondendo em inglês, os áudio gravados em segredo pelo finado marido sendo usados fora de contexto pela acusação. E de todos os lugares, é incrível vir logo da França a renovação do gênero “filme de tribunal”. Pra ver e rever por anos.

    Música:

    Caroline Polachek no Tiny DeskDesire, I Want to Turn Into You entrou em muitas listas de melhores discos de 2023 com justiça. As razões são diversas e recomendo ouvir o disco também. 

    Mas essa apresentação tem muita coisa especial, a começar pela cantora. Acusada frequentemente de usar auto-tune, o que se vê aqui não é só a sua afinação natural ou o alcance e controle abismais: em alguns momentos percebe-se nesse cenário intimista que ela consegue replicar até mesmo modulações de voz que ficariam a cargo de efeitos de estúdio. Alguns comentários vão na linha de é um sintetizador humano ou é a primeira vez que ouço alguém que tem uma pedaleira de efeitos embutida na laringe. Como se não bastasse tudo isso, a banda é muito boa, com destaque para os violonistas e a vocalista de apoio.


  • Disciplina

    Em busca de uma motivação razoável

    #1 

    Eu tinha uns treze para quatorze anos. Era um iniciante no violão que estava desesperadamente buscando um norte. Meu professor tentava me educar com MPB e música clássica. Não tinha necessariamente restrições quanto ao repertório, mas estava numa fase mais geral de rock clássico e alternativo saído de um longo período focado no metal. Isso fazia com que meu engajamento com Milton Nascimento, Chico Buarque ou Baden Powell ficasse próximo de zero, inviabilizando também qualquer rotina de aprendizado teórico. 

    Eu rebatia a didática nas próprias aulas levando de casa coisas como o unplugged do Eric Clapton (meu irmão tinha o songbook). Ele dava uma olhada comigo e então deixávamos o livro de lado para que ele fizesse sua própria interpretação, provavelmente simplificada para me ajudar a engrenar. Mas eu só conseguia me sentir a vítima que tomava uma saraivada de escalas e exercícios de mão esquerda, que eu odiava praticar. 

    Apesar de um pouco conservador no método e talvez com pouca paciência para aplacar minha ansiedade e falta de foco adolescentes, era um professor maravilhoso que me ensinou diversas lições preciosas. A versão de “Old Love” que eu toco até hoje é a dele. E num dia em que me encontrava particularmente frustrado e em que obviamente não tinha feito o dever de casa, mostrei com um certo orgulho alguns dos atalhos que tinha desenvolvido para tocar alguma coisa que ele tinha me passado. Dada a reprovação quase que imediata, respondi à demonstração correta dele com um “mas isso aí são só detalhes”. A réplica foi curta, mas profunda: “música é feita de detalhes”.  

    Caí fora e não apareci mais nas aulas.

    Menos de um ano depois, de forma totalmente aleatória, bati na porta do mesmo professor dizendo que o que eu queria mesmo era tocar violão flamenco (não sei de onde tirei essa ideia, não escutava nada remotamente parecido). Ele me aceitou de novo como aluno e, empolgado, voltei crente de que dessa vez iria me aplicar. Acho que essa série de aulas durou no máximo umas três semanas. Larguei tudo de novo e comecei a tirar músicas de ouvido ou com tablaturas achadas na internet, num dos primeiros usos que encontrei para os mecanismos de busca rudimentares da época. Obtive sucesso moderado com essa abordagem, que no geral é exatamente a mesma até hoje: procuro uma notação de referência, simplifico as partes que acho que não valem o esforço, adiciono alguns floreios quando acho que estou simplificando demais e sigo adiante. 

    A experiência que tive com o violão se repetiu de diversas formas durante a minha vida. Mesmo reconhecendo o papel indispensável da disciplina, sempre tive imensa dificuldade de colocar planos de aprendizado regulares em prática. Rotinas de estudo, progredir antes de focar em outra coisas ou mesmo manutenção de engajamento sempre foram obstáculos em adquirir novas habilidades ou para me desenvolver naquilo em que já tinha alguma aptidão.  

    #2

    Penso que a essa altura a expectativa para esse tipo de relato viria na forma de algum tipo de redenção. Ou pelo menos um bom resumo de lições aprendidas. Mas permita-me oferecer apenas um insight. 

    Encontrar motivação me parece cada vez mais ser crucial. E não digo do tipo “urrú vamos lá” ou “o importante é sonhar”. Mas uma motivação razoável é o que ajuda a ancorar um desejo muito abstrato em alguma espécie de realidade. 

    Sigo no exemplo do violão: quase trinta anos depois daquelas aulas frustradas de flamenco, minha técnica melhorou marginalmente (se é que melhorou). Tenho muito mais experiência e vivência musical, mas minha capacidade de improvisar qualquer coisa não mudou muito. Sempre foi algo que gostaria de dominar, e diversos cursos online ou resoluções de ano-novo não mudaram a realidade: eu não tinha uma motivação mais clara, mais razoável. Eram coisas tipo “quero saber como solar direito”. 

    O que melhorou minha vida nesse sentido recentemente foi fazer as pazes entre minha (baixa) capacidade técnica e o que eu realmente gosto de fazer: tocar bem os acordes, inserir alguns floreios e conseguir reproduzir bem uma música do início ao fim. E o insight veio ao investir um pouco de tempo para entender o que carrega o negócio todo, no final das contas: as bases. John Frusciante faz isso excepcionalmente bem. John Lennon, um compositor brilhante, não é necessariamente conhecido pela sua proficiência na guitarra. Mas é inspirador ver ele carregando boa parte do arranjo de “Dig A Pony” com acordes simples, mas tocando variações que preenchem o espaço brilhantemente. E Hendrix, que jamais será superado, é muito mais conhecido por seu virtuosismo. Porém, a maneira como praticamente orquestra em torno de versos como o de “May This Be Love” mostra que, antes de tudo, é preciso servir a música com boas bases. 

    E nessa jornada de frustrações múltiplas, consegui chegar ao que julgo ser a minha motivação razoável. Claro que não é tocar como Hendrix, Frusciante ou Lennon. Mas apreciar a experiência acumulada para um fim mais modesto: ser o melhor guitarrista-base que eu posso ser. Poder sintetizar isso me tirou um peso imenso que me auto-impus durante um processo que deveria prazeroso e não feito inteiramente de culpa. 

    Se depois disso comecei a estudar e praticar mais? Bom, daí já é outra história.


    #3

    Filme

    Speak No Evil é um filme de terror que não é bem terror. Ele tem apenas uma cena violenta (que é absolutamente brutal, diga-se de passagem). Mas mais que a explosão sanguinolenta que invariavelmente chega, a forma como a trama vai se desenvolvendo é profundamente perturbadora pois mexe num tema muito atual: a incapacidade de algumas pessoas de impôr seus limites, mesmo quando estão diante do que claramente é uma imensa roubada. Na pressão social de agradar, de dar uma outra chance, de experimentar o que nunca se tentou antes pode se esconder o maior dos pesadelos. É para assistir naqueles dias em que se está aberto a arruinar tudo. 

    Podcast

    História FM é um dos meus podcasts favoritos. Tem tanto episódio bom que fica muito difícil recomendar só um. Mas essa semana voltei num antigo que foca nos fugitivos nazistas que passaram pelo Brasil, onde o professor Bruno Leal destrincha o contexto, os mitos e alguns episódios mais conhecidos desse período que foram tema da sua tese de doutorado. Mas o episódio mais surreal de todos é o que dá título ao seu livro, O Homem dos Pedalinhos. Não vou falar mais nada pra não estragar a experiência.


  • Videogame

    Uma amostra de um dos cenários desoladores e ao mesmo tempo estranhamente familiares de Half-Life 2 (aqui, da expansão Lost Coast)

    #1

    [Publicado originalmente em 15 de outubro de 2014]

    A primeira lembrança clara: sentado no chão de madeira da casa da zona sul em Porto Alegre, no que sempre se convencionou chamar de A Sala de Baixo: almofadas jogadas, uma televisão RCA com tampo de madeira, talvez a lareira acesa no inverno. Pulos, gritos e uma algazarra abafada (ou estimulada) pelos sons rudimentares saídos daquela caixa conectada ao aparelho prateado ancorado no chão. Na tela, linhas demarcando a parede de uma espécie de labirinto, círculos piscantes fazendo figuração de vilões e uma espécie de inseto branco em fuga atabalhoada controlada pelo joystick.

    Tartarugas, do Odyssey, foi o primeiro game que joguei na vida. É um pouco estranho fazer essa distinção, porque há pouca memória afetiva e consciente antes disso. Quatro para cinco anos de idade, o suficiente para se dar conta que ele, o videogame, sempre esteve lá.

    Na primeira série, acordava muito cedo para ir para a escola, mas lembro claramente de colocar o despertador para às 5:30 da manhã para poder jogar uma partida de Double Dragon 2 antes de tomar o café. Parava sempre mais ou menos no mesmo lugar e nunca cogitei pausar, desligar a TV e continuar depois do almoço.

    Aprendi o conceito que as outras pessoas tinham do Natal graças ao videogame. A primeira vez que vi alguém ser torturado pela observância da data festiva para se ganhar um presente. Um vizinho de prédio em São Paulo sabia que iria ganhar o Predador do Phantom System com alguns meses de antecedência. Porém, só poderia desembrulhar a caixa no dia 25 de dezembro. Descrevia com certa ponta de tristeza, em todos os nossos encontros, como já sabia ao certo que ia poder jogar Predador, era só esperar a chegada do Natal, afinal estava ali pertinho. Eu não compreendia a necessidade de esperar por um presente que já se sabe qual é, se não tem surpresa, dá o presente de uma vez. E eu sofria um pouco por ele, afinal já tinha jogado Predador e sabia se tratar de uma verdadeira bomba.

    Na década de 80 e início dos 90, a única fonte de informação possível para quem quisesse ler sobre games eram as revistas importadas. Meu pai de vez em quando nos trazia algum exemplar da Electronic Gaming Monthly quando chegava do aeroporto. Não entendia uma palavra de inglês, mas me forçava a ler tudo para de alguma maneira tentar achar dicas ou procurar sobre algum lançamento vindouro. Lembro claramente de ter visto telas de Super Mario Bros.3 que jamais existiram, pois joguei e joguei aquela desgraça que provavelmente é um dos maiores jogos já feitos e nunca, jamais vi uma cena onde o Mario escorrega numa rampa de tijolos azuis em direção à tela, como se fosse aterrissar na sala. Mas essa imagem ficou na minha cabeça por anos e nunca consegui concluir se vi uma foto de uma versão demo, se sonhei por causa da expectativa da primeira partida que demorou meses para acontecer ou se simplesmente inventei tudo.

    Não saber inglês, não ter internet, inventar tudo. Eu acho que levei dois anos para chegar ao final de Monkey Island 2.

    A primeira vez que tive que parar de jogar por um tempo pelo mais completo pavor foi em 1992, com Alone in The Dark. Os gráficos hoje em dia são mais dignos de provocar risadas do que desespero. Cortando para 2012, fui obrigado a desistir de Dead Spacepor não aguentar a ansiedade e os sustos provocados pelos monstros caindo de tubos de ventilação escuros direto na minha cara (ou do personagem). No ano seguinte tentei de novo, exatamente o mesmo fracasso. Desenvolvi sozinho a cura para o trauma, que consistiu em assistir vídeos de outras pessoas jogando como se não estivesse se passando absolutamente nada demais. Deu certo.

    Joguei Half-Life 2 quase quatro anos depois do seu lançamento. E também todos os episódios subsequentes, que dão seguimento à história. Confidenciei isso a um amigo, que me respondeu que gostaria de ser eu naquele momento para poder ter a sensação de jogar Half-Life 2 pela primeira vez de novo. É mais ou menos o que sinto com alguns livros e filmes que continuam existindo por algum tempo, mesmo depois que a experiência termina. Durante alguns meses, fiquei com a sensação terrível de estar vivendo uma vida longe dos personagens, sem saber o que acontecia com eles. Pouco depois, tentei preencher o vazio gigantesco lendo especulações sobre um novo jogo, que provavelmente jamais irá existir, e acabei me dando conta que a vida é mais ou menos isso aí.


    #2

    Seis anos depois de eu publicar esse texto pela primeira vez e quase dezesseis anos após o lançamento de Half-Life 2, finalmente um novo capítulo da série veio ao mundo. Half-Life: Alyx é um prequel que foi concebido para ser jogado exclusivamente através de headsets de realidade virtual. Considerado de forma quase unânime por críticos e fãs como um dos maiores jogos já feitos para PCs, chegou a ser apontado como o killer app que tantas empresas estão tentando produzir para tornar os óculos de VR um produto com apelo de massa. Mas parece que ainda não foi dessa vez. E confesso que minha aversão a todo o conceito em si me impediu de investir no hardware que me permitiria imersão total num dos mundos que mais me impressionaram nessa longa trajetória gamer. 

    Por ora, opto decidido pela melancolia do que poderia ter sido. Mas ao digitar essa espécie de posfácio, confesso que em algum canto começa a crepitar uma fagulha de quem sabe. 


    #3

    Leitura

    Está boa demais essa entrevista com o Werner Herzog no Guardian. Lá pelo meio ele responde uma pergunta do cineasta Ken Burns sobre a influência dos sonhos na sua obra e a resposta não poderia ser mais Herzog: I do not dream. Quem sabe um colega de aphantasia? Imaginei o que seria de bom um documentário dele sobre o tema.


  • Aphantasia

    Agora eu enxergo é nada
    Pessoas sentadas assistem ao pôr-do-sol na beira do rio IJ, que divide a estação central de Amsterdam e a região norte da cidade.

    #1

    Não lembro exatamente quando nem onde foi a primeira vez em que me deparei com o conceito de aphantasia. Alguém me alertou a respeito? Caiu aleatoriamente no meu feed nas redes sociais onde não estou mais? Só sei que faz alguns anos e envolvia alguma das tantas repercussões na mídia a respeito do estudo contemporâneo mais detalhado do assunto. A pesquisa foi feita pela equipe do professor Adam Zeman da universidade de Exeter e o artigo mais famoso publicado em 2015. 

    Mas o conceito de aphantasia já havia sido abordado lá em 1880 por Francis Galton (que, por sua vez, era primo de Charles Darwin. Mas vamos adiante). 

    Enquanto Galton conduzia uma de suas pesquisas, ficou meio abismado ao perceber que a proporção de seus pares cientistas que relatavam ser incapazes de entreter imagens mentais parecia ser ainda maior que a média:

    To my astonishment, I found that the great majority of the men of science to whom I first applied, protested that mental imagery was unknown to them, and they looked on me as fanciful and fantastic in supposing that the words “mental imagery” really expressed what I believed everybody supposed them to mean. They had no more notion of its true nature than a colour-blind man who has not discerned his defect has of the nature of colour.

    Em estudos mais atuais (2022), assume-se que por volta de 0.8% da população mundial é incapaz de produzir quaisquer imagens mentais. Já 3.9% das pessoas não conseguem visualizar nada mentalmente ou têm uma vaga capacidade para tanto. E os estudos feitos por Zeman parecem reforçar a percepção que Galton teve ao consultar seus pares lá no século 19: pessoas com aphantasia têm mais probabilidade de trabalhar nas áreas científicas ou com grande base em exatas

    Em retrospecto e fuçando em todos os links que encontrei, acredito que tenha sido esse post aqui que me tragou para o fenômeno. Sei que na época me impactou profundamente saber que existia um nome e estudos sérios para o que sempre experimentei desde que me conheço por gente. 

    E é ainda mais interessante que Zeman e sua equipe entraram em contato mais direto com o assunto ao receberem um paciente que começou a sofrer sintomas de aphantasia depois de uma cirurgia. Um tratamento recuperou parte da sua capacidade de visualizar coisas mentalmente, mas eles não imaginavam que ao publicar os resultados da pesquisa seriam contactados por dezenas de pessoas relatando a mesma história. Com uma grande diferença: todas essas pessoas narravam ter simplesmente nascido assim, sem citar um evento causador ou trauma. 

    *******

    Fecha os olhos e imagina um…

    Não. Não consigo. 

    Lendo livro tal eu não conseguia tirar da cabeça a cena tal e consegui me ver lá dentro e…

    Também não. 

    Não é que tu não sonha, é tu que não lembra. 

    Tá bem. Então não lembro de 99% dos sonhos que tive na vida. 

    Será que perto da morte minha vida não vai passar na frente dos meus olhos como num filme? 

    *******

    Sempre foi um pouco frustrante, como descobrir que só resta 5% de bateria e o carregador ficou em casa. Achava também que era a razão por eu não conseguir desenhar muito mais que bonecos de palitinho e por ter problemas de orientação básica. 

    Sorte a minha ter grande talento para cálculo e ter dedicado toda a minha vida até aqui a trabalhar como engenheiro de acelerador de partículas e…bem, deixa pra lá. 


    #2

    Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:

    Podcast: 

    Broken Record com John Frusciante: longa conversa do produtor Rick Rubin com o guitarrista. Como colaboradores de longa data, rende mais de 4 horas de conversa com insights artísticos, humanos e espirituais de um dos gênios de nossa época. São quatro episódios que recomendo fortemente, gostando ou não da música envolvida. 

    Música:

    Maggie Rogers no Tiny Desk: não é somente por ser uma das artistas favoritas da minha filha de 9 anos. Mas de tudo que tenho tentado consumir e entender da nova geração (tiozão detected), Maggie Rogers para mim está muitos degraus acima. Apesar dos arranjos nos discos serem meio modernosos demais pro meu gosto (tiozão detected de novo), o talento de composição que ela demonstra me fez soltar a arriscada e abalizada avaliação em um frase de certo impacto que é: mas é a Joni Mitchell dos 2020’s. Dito tudo isso, aprecie essa performance de três dos hits dela em formato intimista e me diga que estou errado (melhor não).