Finalmente consegui assistir Slowdive ao vivo, depois de ter ingresso na mão duas vezes e precisar vendê-los horas antes por motivos mil.
Foi ainda melhor do que eu esperava. Som enorme, mais pesado e expansivo do que nos discos. Rachel cantando maravilhosamente, as guitarras abrasivas sempre se entrelaçando, o baixo pesado e no centro de tudo, bateria aguda e servindo para manter o fluxo sempre adiante.
Fiquei com os olhos marejados no bis durante “Machine Gun” e quase apaguei em “No Longer Making Time”, que foi a quinta música do setlist. Essa pra mim foi o ápice sensorial do show, pois fui absolutamente fustigado pela catarata de luzes estroboscópicas vindas do palco. Fechei os olhos, olhei pro chão e durante alguns minutos (que pareceram uma eternidade) achei que realmente poderia estar tendo uma experiência de arrebatamento completo. Num estádio isso já engoliria o ambiente todo, mas num ambiente relativamente pequeno a experiência foi de estar correndo perigo por uma boa causa.
Que coisa formidável testemunhar uma banda tão influente no que parece ser o seu ápice criativo e performático. Ficar 22 anos sem lançar um disco talvez tenha produzido as condições ideais para um universo que parece não ter fim.
Bônus 1: tenho uma playlist no Apple Music com o que considero boas músicas no espectro shoegaze/dream pop. Se for usuário do Spotify, existem ferramentas como o playlistor.io que fazem o trabalho de conversão. E como toda minha playlist, é infinita e eterna. Vou colocando sons novos sempre que lembro ou quando algo me impressiona.
Levo semanas, talvez meses para admitir que tenho um novo hiper-foco. Ele fica ali tentando escapar pelas frestas e enquanto isso vou alimentando o bicho de forma caótica achando que ele simplesmente desistirá. Até que um dia ele arromba a porta e sai por aí assobiando.
Na verdade, venho entretendo a ideia de fazer espresso em casa pelo menos desde a pandemia. Mas os anos se passaram e continuei a explorar o universo do café gourmet utilizando meu método preferido, que é o clássico filtro de papel. Sendo assim, me aprofundei violentamente nessa técnica, indo atrás de diversos vídeos no Youtube e adquirindo acessórios antes totalmente dispensáveis, como uma balança e um moedor elétrico de precisão, além de chegar a absurdos como evitar filtro de papel branco pois estava começando a sentir o gosto do químico usado na sua confecção.
A chave virou alguns dias atrás depois de passar meses pesquisando sobre máquinas caseiras de café espresso. Queria algo compacto e de preço acessível, pois nesse universo até mesmo os aparelhos considerados ideais para iniciantes custavam cinco vezes mais do eu que estava disposto a pagar. Adquiri então a Delonghi Dedica EC685 , que está no mercado há anos e consegue fazer um espresso bastante aceitável por padrão. Mas se esse fosse o objetivo, teria sido mais lógico comprar uma Nespresso ou algo semelhante.
A promessa dos fóruns especializados era que, por ser tão popular, esse modelo se beneficiaria de uma imensa comunidade de entusiastas que, além de compartilhar conhecimento, teriam documentado tudo a respeito, incluindo os melhores acessórios, upgrades de peças feitas por terceiros de forma profissional e até mesmo modificações caseiras extremas e de suposto baixo risco para quem não tem medo de brincar com ferro e fogo.
Nos primeiros dias fiquei satisfeito em compreender e aplicar os parâmetros pregados pelo manual: encher o compartimento de água, escolher a cesta de café simples ou dupla, depositar nela o grão recém moído, encaixar o portafilterna máquina e apertar o botão. Tirei uns espressos aceitáveis, mas aí voltei aos fóruns e percebi que estava fazendo tudo errado.
Nos dias e noites que se seguiram, foram momentos febris testando moagens mais grossas ou finas, pesando água e cronometrando o tempo até o produto final na xícara, descobrindo que moer café de torra mais escura gera um produto final diferente em termos de massa comparado com torras mais claras e…adquirindo alguns acessórios que prometiam mais flexibilidade, mais controle, menos facilidade e mais dor, porém com muito mais sabor.
E valeu a pena todo o trabalho? De forma pragmática, devo dizer que estou bebendo mais café, o que é um mau hábito. Bons hábitos para equilibrar: começar um hobby novo, resolver pepinos, aprender com os muitos erros e ir atrás de ajuda e conhecimento.
Fico exausto só de recapitular a jornada até aqui. E nesse espírito devo dizer que entendo totalmente relatos de chefs que dizem só querer comer fast food ou comida congelada depois que chegam em casa do trabalho. Por que sim, mesmo com tantas facilidades modernas, a verdade é que se alimentar (ou fazer café) direito é um delicioso martírio.
Ontem fiquei sabendo por um amigo do falecimento do vocalista da lendária banda Porc’s Cutlet (vulgo Porcs).
Não conheci o Guilherme, mas fomos contemporâneos na cena musical independente na Porto Alegre do fim dos anos 90 e início dos anos 2000. Provavelmente batíamos em idade. Eu era integrante de uma banda chamada Sensifer. Me aproximei um pouco tarde demais do círculo musical com influências mais calcadas no hardcore (do qual a Porcs fazia parte). Então infelizmente peguei uma única apresentação deles no Espaço Tear, mais uma das casas de shows que pipocaram por esse período na esteira do mítico Garagem Hermética.
Era perto do verão de 2002 e lembro de pisar no lugar e já sair suando profusamente, como é natural quando se está na capital gaúcha entre novembro e março. Acho que esse show marcava um retorno da banda depois de um hiato. Ou era apenas um pequeno milagre como quase todo show que acontecia nessa época: pessoas tinham seus trabalhos ou estudavam e torravam grana que não tinham em estúdios, aluguel de equipamento, confecção de cartazes, pagamento pra reservar o espaço que geralmente dava prejuízo pois a bilheteria nunca seria o suficiente e mais um monte de perrengues. Tudo em nome da música e de poder se expressar num ambiente que permitisse atingir um certo nível de catarse.
Já tinha visto vários exemplos de público pirando com a música, mas lembro vividamente a sensação de estar presenciando algo um pouco mais elevado. As pessoas gritavam com o vocalista, invadiam o palco e roubavam o microfone, ou simplesmente alguém da banda ia para o meio da galera e parecia nem querer voltar. Por sorte eu já tinha uma câmera digital rudimentar que obviamente era avançadíssima para aquele ano. Fui garimpar meus arquivos e fiquei muito grato de encontrar alguns registros com aquela vibe inconfundível do início do século 21: muitas cenas borradas, olhos vermelhos de flash mal colocado e os inconfundíveis fantasminhas de luz que teimavam em se intrometer.
Ao remexer com uma certa dose de nostalgia nessas memórias, me senti sortudo por ter podido testemunhar o talento da Porcs e do Guilherme naquela fatídica noite de 2002. Que possa ter um renascimento auspicioso.
Mais registros musicais da Porcs, inclusive desse show no Tear, podem ser encontrados nessa playlist no Youtube.
(publicado originalmente em 23 de novembro de 2014)
I.
Demorei um pouco para conseguir me equilibrar pela primeira vez. A maioria das crianças à minha volta tinha conseguido aos seis, cinco e até quatro anos de idade. Lembro da pressão se empilhando sobre cada fracasso. Até que decidi vai ser hoje e me forcei a só voltar para dentro de casa depois de obter sucesso. Passava algum feriado na casa de amigos dos meus pais no litoral paulista e tinha uma Monark aro 16 preta com detalhes em amarelo. Minha estratégia: montar em cima da grama e tentar pedalar em diagonal até alcançar a rua de areia. O trajeto devia ter uns cinco metros, no máximo. Tentei por horas (medidas em tempo de criança), mas quando finalmente consegui, não continuei. Minha forma de comemorar a habilidade recém-adquirida: saltei da bicicleta e voltei empurrando-a. O punho de borracha do guidão havia sido furado pelo cano de metal, que estava entupido de areia e tufos de grama pendendo para fora como cabelos. Não pedalei de novo por muito tempo.
II.
Cavalos-de-pau intermináveis no areião dos terrenos baldios. Fritar os pneus em freadas bruscas na rua feita de paralelepípedos afiados (pareciam crivados de vidros). Deixar o pneu ficar careca era uma afirmação no grupo, mas chegar ao ponto de fazer as costuras vazarem para fora da câmara era para poucos. Optava por frear usando a sola dos chinelos, que rapidamente derretiam e ficavam imprestáveis. Tinha medo que o pneu explodisse.
III.
Uma vez pedalei no segundo andar de uma casa em obras.
IV.
Vi muita gente se esborrachando feio e se salvando de uma temporada no hospital. Vi gente dando de cara num muro e quebrando a bicicleta ao meio. Vi também um amigo perder a roda da frente numa descida alucinada e conseguir aterrissar em pé, sem qualquer dano, graças às suas pernas longas. Outro voou por cima de uma rampa construída pelo pessoal do skate, mas no ar a bicicleta tombou e ele, destemido, manteve-se na mesma posição, agarrado ao guidão como se nada tivesse acontecido, arrastando-se por alguns metros (enxerguei a cena em câmera lenta). Não lembro de ter caído feio, mas de certa forma um tanto estranha desejava que acontecesse.
V.
Esse cara mais velho pediu minha bicicleta emprestada, certa vez. Era o terror da vizinhança. Mal tive tempo de dizer não ele já tinha desaparecido em altíssima velocidade, saltando lombadas e calçadas e arrebentando com tudo. Desapareceu por uma meia hora. Conformado, mas desejando que alguma coisa ruim acontecesse, voltei para casa. Mal fechei a porta e tocou a campainha e lá estava ele, sorriso amarelo, joelhos derramando sangue. A bicicleta parecia nova.
O que seria de um blog à moda antiga sem uma bela egotrip, não é mesmo? Essa aqui será uma daquelas, possivelmente em diversas partes e sem um final determinado.
De início pensei num top 5 de shows mais importantes que já fui. Rapidamente isso passou para 10. Comecei a lista de fato e já estava chegando em 17…então resolvi tentar uma combinação de relato de um show específico com diversos eventos num post só. Vamos ver onde vai dar.
A lista abaixo é o que tenho anotado depois do primeiro brainstorm. Minha intenção é atualizar esse post assim que ela for se expandindo. Possivelmente também vou agregar informações que vou ter que pesquisar um pouco mais a respeito pois não mantive qualquer espécie de registro físico como ingressos, etc. E câmeras digitais não existiam ou não se faziam disponíveis em boa parte deles.
Enfim, este será o início, o meio e o fim de uma jornada que começou no início da década de 90. Logo mais sai o primeiro texto, e enquanto isso fiquem com A Lista (sem ordem ou critério de preferência):
Alice in Chains (Porto Alegre)
Faith No More (Porto Alegre)
Caetano Veloso (Hamburgo)
The Smashing Pumpkins (São Paulo)
Neil Young (Amsterdam)
Wilco (Amsterdam)
Feist (Utrecht)
Planeta Atlântida (Xangri-Lá)
M2000 Summer Concerts (Praia do Barco)
Sepultura, Raimundos e Ramones (Porto Alegre)
Legião Urbana (Porto Alegre)
Belchior (Porto Alegre)
Massive Attack e Ben Harper (Porto Alegre)
Elomar (Porto Alegre)
Guns N Roses (Porto Alegre)
Terra Samba, Asa de Águia e Sid Guerreiro (Porto Seguro)
Detalhe de O Jardim das Delícias Terrenas, do pintor Hieronymus Bosch. Hoje em dia isso é considerado “conteúdo” pelo pessoal das big techs.
É clickbait que chama? Pois é.
Por causa do meu trabalho, tenho contato quase todos os dias com esse pessoal que acredita em usar inteligência artificial para absolutamente tudo e que não existe futuro possível sem ela. E que é inteligência artificial MESMO, e não um monte de scripts reagindo a prompts de texto baseados em material na sua maioria roubado dos seus autores. É uma chateação sem fim.
No entanto, quando estou tentando buscar o contraponto quase sempre observo o extremo oposto na ala que se dedica a bater os tambores de que isso vai acabar com todos os empregos do mundo. Que não haverá espaço algum para a agência humana diante da máquina que sabe fazer tudo. Ou que simplesmente o planeta será exterminado no processo. É outra chateação sem fim.
Tento sempre ser crítico com os extremos, mas algumas vezes o único caminho é criar a sua própria hipérbole e se divertir. Começou em grupos de WhatsApp com amigos, onde passei a compartilhar notícias dos muitos reveses recentes das big techs que estão apostando todas as fichas em alguma espécie de inteligência artificial e dando com os burros n’água (sempre quis digitar essa expressão) ou simplesmente consolidando seus monopólios na base da força bruta ao mesmo tempo em que o poder público finalmente parece começar a reagir. E toda vez que passava adiante um pouco do ridículo proporcionado por esse messianismo digital acabava assinando com meu novo bordão:
IA não existe e nunca existirá.
É piada, mas também não é. Por isso sigamos.
Tenho lido tanta coisa sobre isso que tem me feito sorrir meio aliviado e meio nervoso que nem sei por onde começar. Na verdade sei: esse post do Nikhil Suresh é uma obra-prima de humor ao mesmo tempo crítico, melancólico e desesperado com o estado atual de toda essa ladainha:
I’m going to ask ChatGPT how to prepare a garotte and then I am going to strangle you with it, and you will simply have to pray that I roll the 10% chance that it freaks out and tells me that a garotte should consist entirely of paper mache and malice.
Além da catarse, no texto ele elabora muito bem sobre o papel de executivos, consultores e falsos messias do Vale do Silício em tentar vender a tecnologia como algo que ela simplesmente não é. Tudo, é claro, para tentar emplacar o retorno financeiro enorme que prometeram aos seus acionistas. Isso funcionou por algum tempo, mas além de claramente estar se configurando uma bolha, talvez ela já tenha até estourado.
Outra fonte de informação e humor corrosivo sobre esse assunto é o Better Offline. Tanto no podcast quanto na sua newsletter Ed Zitron recebe convidados para descascar absurdos do mundo de IA, mas também do rumo das big techs em geral. Recomendo especialmente seus episódios sobre a OpenAI e essa verdadeira diatribe contra o executivo que teria destruído o mecanismo de busca do Google. Zitron algumas vezes admite estar totalmente possuído pelo ódio quando está produzindo seu material e isso adiciona uma camada extra de deleite que a essa altura simplesmente não dá para recusar.
PS: um dia depois de postar sobre minha irritação com todo esse papo de IA, eis que finalmente encontro um texto equilibrado sobre o assunto. Ouvi na versão podcast, mas também está disponível o texto original no Guardian:
No god in the machine: the pitfalls of AI worship (podcast | texto)
No momento em que digito essa introdução, não tenho muita noção do que estou fazendo nem para quem. Não sei nem se vou publicar ou para quem vou mandar. Mas alguma coisa está dando um empurrãozinho extra dessa vez, a ponto de eu conscientemente decidir sentar na frente do computador e fazer algo a respeito.
1. É você que ama o passado e que não vê
Tive acesso à internet e publiquei meu primeiro site no ano de 1995. Era evidente o privilégio naquela época, tanto em ter um computador quanto poder acessar a internet. Raios, mesmo telefone era algo que muita gente apenas esperava algum dia ter. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
Era um tempo sem redes sociais. As vi nascer, bem como algumas das tecnologias que usei para interagir on-line de forma mais expansiva. E também ajudei a enterrá-las: IRC, ICQ, MSN, scraps de Orkut. Abri minhas perspectivas em muitos sentidos. Conheci gente de toda parte do Brasil e do mundo. Minha primeira banda. Minha primeira namorada. Coisas marcantes, dezenas e dezenas de arrependimentos, todo o pacote de praxe que vem junto com a jornada. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
No início dos anos 2000, comecei a trabalhar com internet no Terra enquanto empurrava com a barriga uma faculdade de jornalismo onde fiz amigos para a vida. No portal também fiz amigos, trouxe amigos, deixei amigos: pessoais incríveis, com contextos completamente diferentes, mas unidas em entregar experiências e histórias para um mercado e uma indústria nascentes. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
Ainda na primeira metade dos anos 2000, participei de algumas das comunidades blogueiras incipientes no Brasil. Além da publicação de conteúdo em si (majoritariamente focado no próprio umbigo, é claro), foram movimentos que oportunizaram trocas, mais amizades sinceras, expansão de ideias e tudo mais. Mais que somente texto, houve também uma experimentação com formatos mais curtos (pré-Twitter), com fotografia, vídeos e até mesmo podcasts, enfiados à mão num servidor e linkados por força bruta numa página e gerando um feed de RSS primitivo. Não existia streaming. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
Até que isso, como todas as coisas, arrefeceu. Ou mudou de forma e passou a não interessar tanto. Ou simplesmente se tirou o time de campo para a nova geração ou qualquer um desses clichês para justificar a mudança de prioridades pouco antes dos 30 anos. Eram outros tempos, mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
2. Que o novo sempre vem
Crise de meia idade? Talvez. A verdade é que já tentei voltar a escrever, mas sempre de um ângulo meio capenga. Pra não dizer equivocado. E o que faz agora ser diferente? Não sei ao certo. Mas parece uma mistura de “e por que não?” com “vai que”.
São outros tempos. mas o meu tom é sempre apenas moderadamente saudoso.
3. Os horrores que eu lhe digo
Tá. Vou tentar ser mais sucinto:
Isso será um blog e de volta ao início dos anos 2000 usando WordPress e tudo e tendo meu próprio domínio. Chega de Substack. Talvez eu também mande posts por e-mail mais adiante, pois hoje em dia ninguém mais tem bookmarks no seu navegador. Nem ninguém usa leitor de RSS. Acho.
Não vou escrever sobre meu dia-a-dia, mas obviamente sob a minha perspectiva.
Os assuntos majoritariamente devem ficar entre tecnologia, cultura (ênfase em música, cinema e quetais aqui e ali), culinária (sem receitas, mas anotações sobre comer e beber) e talvez um pequeno bocado na intersecção entre ser imigrante/morar fora do meu país de nascimento e criação há quase dez anos.
Não escreverei por métricas ou exposição. Mas evidente que ficarei contente com a sua decisão de gastar seu tempo com isso.
Não me lembro se morava em São Paulo ou Porto Alegre, mas foi quando cursava o primeiro grau. Alguém falou “daí eu dei um ‘drops’ nos peito dele”. Fiquei escutando o relato do que seria alguma espécie de briga meio de longe, mas lembro do que consistia a técnica: era basicamente uma voadora de lado, dada com os dois pés. Só fui tentar retomar o termo anos mais tarde, na grande febre do Street Fighter 2. Mas desde então o golpe acabou virando A Voadora do Zangief.
#2
Isso era em São Paulo. Até pesquisei um pouco para ver se encontrava a origem, mas na minha infância por lá era comum chamar “bala” de “drops”. Ou mesmo “bala drops”. Sei que é um termo comum para se referir a mil tipos de doce, mas não encontrei o nexo causal para este ficar tão predominante por lá. Acho que até me choquei quando, de volta a Porto Alegre, meus amigos chamavam “Drops Garoto” de “Pastilha Garoto”.
#3
Eu ficava absolutamente maluco com a maneira como o palhaço Bozo abria um picolé Galak na hora de fazer merchandising da finada Yopa no SBT. Ele delicadamente levantava duas abas na parte de baixo do sorvete e voilá: o plástico saía como se fosse uma luva. Tentei fazer isso dezenas de vezes, mas sempre acabava com o saco rasgado na diagonal ou forçando a barra até o palito trincar.
#4
É meio vilificado pelos fãs, mas não importa quanto tempo passe: sempre que boto o Wild Mood Swings do The Cure pra tocar é uma viagem ensolarada para 1996. Que disco bem bom, que salada de peso serião e duro misturado com uns vaudevilles doidos e alguns dos melhores refrãos da década. Além de uma das melhores aberturas de disco de todos os tempos, tive sorte de pegar esse petardo ao vivo e nunca esquecerei.
#5
Um belo apanhado da carreira e vida do Wim Wenders no Observer. Aproveita a repercussão do seu último filme, “Perfect Days”, para examinar questões onipresentes na sua obra. Uma perspectiva de quem levou décadas, mas finalmente parece ter se encontrado.
Tanto “Perfect Days” quanto “Fallen Leaves”, do Aki Kaurismäki, me proporcionaram um estado de fuga e contemplação que há tempos não encontrava no cinema. Em épocas em que quase toda produção audiovisual é too big to fail, dos seriados a blockbusters e até mesmo algumas produções estrangeiras incensadas pela Academia, é revigorante ver dois diretores tão distintos não hesitando em produzir arte profundamente autoral e sem compromisso com entregar tudo de bandeja.
Semana passada assisti o documentário “Anselm”, do Wim Wenders. Infelizmente não foi em 3D nem numa tela 6K (existe?) como o diretor o concebeu, mas mesmo na TV de casa foi especial. Anselm Kiefer é um dos maiores artistas visuais vivos e uma pequena obsessão particular.
A quem se interessar em buscar mais contexto antes do filme, uma boa porta de entrada são duas matérias do jornal The Guardian. A primeira é uma entrevista de 2023 que abre com uma declaração que já elucida muita coisa: “our house was bombed the night I was born”. A outra, de 2014, tenta colocar em palavras e imagens o atual estúdio do artista no sul da França. Talvez o protagonista de fato no filme de Wenders, o local tem 80 hectares para abrigar uma produção de escala descomunal onde criação e aniquilação estão sempre lado a lado, não raro em combustão.
Tomei contato com a obra de Kiefer pela primeira vez numa viagem para Berlim. Eu estava de férias e tinha viajado para encontrar a Júlia depois que ela concluiu uma bolsa de estudos. Alguns trabalhos estavam expostos na Neue Nationalgalerie, e lembro de ter sido imediatamente tragado. Uma marca foi deixada e é cultivada desde então.
Black milk of dawn we drink you at night
we drink you mornings and noontime we drink you evenings
we drink and we drink
A man lives in the house he plays with the snakes he writes
he writes when it turns dark to Deutschland your golden hair Margarete
Your ashen hair Shulamit we dig a grave in the air there one lies at ease
O tom é evidentemente soturno, desesperador quando não beirando o insuportável. No entanto, a cadência, a maneira de concatenar as palavras e os versos circulares rapidamente conduzem ao que parece um estado de transe. Kiefer explora tanto esses temas que chegou a dedicar uma exposição inteira a Celan. Nesses trabalhos é comum o artista transcrever versos inteiros da poesia que ajudou o autor de origem romena a processar a experiência do holocausto. E apesar de empregar materiais pesados, há sempre algum facho de claridade tentando romper com a matéria escura dominante.
Wim Wenders também nasceu em 1945 e, apesar de nenhuma vez aparecer interagindo diretamente com o objeto do seu filme, fica claro que os dois, tão distintos no seu fazer artístico, encontraram pontos de convergência inevitáveis pelo caminho. E se fica difícil de colocar em termos mais concretos, essa passagem de um texto de Ruth Franklin sobre como Paul Celan ajudou a refundar a língua alemã toca no ponto do suposto hermetismo da sua poesia, recurso bastante usado pela crítica quando um artista não parece ecoar as expectativas de uma época:
Both poetry and prayer use words and phrases, singly or in repetition, to draw us out of ourselves and toward a different kind of perception. Flipping from the poems to the notes and back again, I wondered if all the information amounted to a distraction. The best way to approach Celan’s poetry may be, in Daive’s words, as a “vibration of sense used as energy”—a phenomenon that surpasses mere comprehension.
“Anselm” se desenrola de forma mansa, delicada. É um documentário na forma, às vezes se aproximando de um sonho que parece muito mais interessado na energia e vibração dos sentidos do que em compreender o que quer que seja. Mas ele tem um olhar atento que acompanha o movimento ininterrupto que o artista faz adiante, tomando o cuidado de nunca perder de vista tudo aquilo que o precedeu.
Cena de “Anselm”, documentário do cineasta alemão Wim Wenders
2023 foi um ano atípico eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Eis que imediatamente minha mente emendou com um e qual ano recente não foi atípico? Mas ainda assim, diria que na jornada até aqui, consigo classificar como mais atípico que de costume. Que costume?
Acabei indo para Porto Alegre de última hora no final do ano passado. Dada a crise da vez, pareceu um escape desejável para coroar um certo progresso eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
E em boa medida foi. Reencontrei amigos queridos que não via há muito tempo. Outro que não via fazia quase 12 anos. E mesmo com tanto tempo e distância entre nós, foi excelente perceber que tudo seguia igual. Ambos na condição de turistas na própria cidade, conseguimos rapidamente estabelecer a dinâmica de outrora. Ela obviamente não é realista nem mesmo sustentável nesse estágio da nossa vida, mas o simples fato de existir como tal e ainda poder ser retomada no espaço e no tempo é um regozijo por si só eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
Mas já nos meus últimos dias por lá, ressurgiu aquela sensação um pouco desconfortável de não se saber bem onde está. Não chega a ser um não pertencimento, pois no minuto em que piso no saguão do Salgado Filho eu já saio quicando como em nenhum outro lugar. Não necessariamente de felicidade, mas como um jogador recém-aquecido substituindo um colega no segundo tempo eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar. Mas é meio que entrar quando já está estourando o tempo regulamentar, então ou se bota total foco e profissionalismo no tempo exíguo ou simplesmente fica-se fazendo de morto o que pode ser decisivo dependendo do estado da partida eu pensei, sentado na cadeira da mesa de jantar.
#2
Nos parágrafos acima sequestrei, torturei e possivelmente desfigurei o cacoete do narrador-protagonista de Woodcutters (Derrubar Árvores, editado no Brasil pela Todavia), atualmente o meu livro favorito do escritor e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard.
A trama é bem simples: o narrador está num jantar da alta burguesia cultural de Viena e, enquanto os participantes aguardam a chegada de um ator que é o convidado de honra, fica observando e tecendo comentários a respeito de tudo e todos. Além de descrições pouco lisonjeiras, em especial da cidade de Viena e do seu ethos, ele também acaba rememorando o dia anterior, onde foi a um enterro de uma mulher com quem mantinha uma relação de proximidade (não sabemos de que natureza). Há ainda um embate com uma pessoa das letras que, depois de muitas páginas de pura acidez e destruição, acaba por revelar-se quase uma empatia, permeada por algum arrependimento do protagonista por não ter levado uma vida mais simples, na forma de um cortador de árvores que dá título ao livro.
O cacoete é repetido à exaustão em praticamente todas as páginas do primeiro terço do livro, num hábito bastante comum na escrita de Bernhard. Andar em círculos, demolir tudo e todos, mas revelar uma certa nostalgia por algum tempo ou lugar é algo que costuma acontecer com frequência nas suas narrativas. E, apesar de tudo soar excessivamente niilista para muita gente, o que é totalmente compreensível, é preciso ressaltar o humor que se embrenha pelo meio de tanta ruína. Nesse caso específico, Woodcutters é o livro que mais me fez rir na vida, gerando por vez acessos que me interrompiam a leitura por horas ou até dias.
Especialmente por conta do que foi escrito em Woodcutters e da forma como se refere à Áustria em toda sua obra, Bernhard foi frequentemente acusado de ser um Nestbeschmutzer na imprensa e em outros meios culturais. Obviamente o termo em alemão é mais, digamos…específico. Mas nesse caso, cuspir no prato em que comeu à exaustão dá ainda mais força para o alívio cômico que invariavelmente acaba chegando, seja de forma direta ou somente ao se contemplar o absurdo de algumas das suas hipérboles. É o caso da minha passagem preferida do livro, em que o narrador dá voz ao convidado de honra que parece espelhar seus sentimentos em relação ao cenário artístico de Viena:
The story of the directors of the Burgtheater is not just a scandalous story, said the actor, it’s possibly the saddest of all Viennese stories. Vienna is an art mill, the biggest art mill in the world, in which the arts and artists are ground down and pulverized year in, year out; whatever the art or whatever the artists, the Viennese art mill grinds them all to powder. It grinds everything to powder—everything, said the actor, quite ineluctably. And the curious thing is that all these people jump into this art mill entirely of their own volition, only to be totally ground down by it. Even the Burgtheater directors jump into it of their own free will, having in some cases spent their whole lives frantically seeking an opportunity to do so, falling over themselves to jump into this art mill in which they’ll be totally ground down. Totally ground down, totally pulverized, exclaimed the actor.
Esse livro de Bernhard causou tanto furor que chegou a ser recolhido das prateleiras depois que um juiz deu ganho de causa para o compositor Gerhard Lampersberg, que entrou com um processo alegando ter sido difamado ao se enxergar no casal Auersberger, os donos do apartamento onde se desenvolve a história.
Em uma entrevista logo após o lançamento do livro e antes deste ser confiscado, Bernhard elabora um pouco mais suas ambições com a obra e do seu fazer literário de um modo geral. Ali ele deixa bem claro que buscou uma espécie de catarse e que, apesar de vertiginosamente se manter mais no canto da aniquilação, o que ele busca ao final de contas é a grande união de tantas antíteses. Dessa forma, no momento em que conseguem escorrer pelas tantas rachaduras que vão aparecendo pelo caminho, a empatia, beleza e nostalgia acabam por ter um impacto de uma epifania:
FLEISCHMANN: And would you say the excitement increases the closer one gets to the conclusion?
BERNHARD: An excitation is something that keeps increasing until the very end. And so the book naturally ends in a state of total excitation by the city of Vienna, in embraces and annihilation all at one go, in a hug-like chokehold on Vienna, and [in my saying] Vienna, you are the best and at the same time the most horrible of all cities, as I daresay anybody else would about his home town.
#3
Algumas recomendações de coisas que me impressionaram, fascinaram ou emocionaram recentemente:
Filme:
Espetacular o Anatomy of a Fall. Direção firme e econômica, um roteiro incrível e atuações fora de série. Mas o que mais me impressionou foram os elementos que vão sendo introduzidos para aumentar o ruído e a sensação de ser impossível extrair “a verdade” num tribunal: o testemunho do menino cego, a acusada num tribunal em Grenoble ouvindo perguntas em francês e respondendo em inglês, os áudio gravados em segredo pelo finado marido sendo usados fora de contexto pela acusação. E de todos os lugares, é incrível vir logo da França a renovação do gênero “filme de tribunal”. Pra ver e rever por anos.
Música:
Caroline Polachek no Tiny Desk: Desire, I Want to Turn Into You entrou em muitas listas de melhores discos de 2023 com justiça. As razões são diversas e recomendo ouvir o disco também.
Mas essa apresentação tem muita coisa especial, a começar pela cantora. Acusada frequentemente de usar auto-tune, o que se vê aqui não é só a sua afinação natural ou o alcance e controle abismais: em alguns momentos percebe-se nesse cenário intimista que ela consegue replicar até mesmo modulações de voz que ficariam a cargo de efeitos de estúdio. Alguns comentários vão na linha de é um sintetizador humano ou é a primeira vez que ouço alguém que tem uma pedaleira de efeitos embutida na laringe. Como se não bastasse tudo isso, a banda é muito boa, com destaque para os violonistas e a vocalista de apoio.